Conto: nos rastros de Gardel

Conto: nos rastros de Gardel

Um encontro em Paris

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      Eleutério Guimarães, o enigmático uruguaio que conheci em Paris, originário de Tacuarembó, era um milongueiro de alma e instrumento. Mas não desprezava o tango. Uma vez, falamos de Carlos Gardel como se fosse um assunto corriqueiro entre nós. Eleutério tinha chegado de uma das suas tantas viagens a Toulouse, suposta terra natal da mãe do rei do tango, e parecia fascinado com alguma descoberta. Estava sempre investigando alguma coisa que nunca chegava a revelar por inteiro, preferindo semear pistas, indícios, possibilidades. Lembro-me como se fosse agora que ele pediu a sua taça de vinho da casa e ficou absorto por longos minutos de outono. Era tanta a sua compenetração que esqueceu de tirar o “chambergo” preto. Para ele, com seu rígido código de honra, era vergonhoso ficar de chapéu em qualquer ambiente fechado.

– Dias assim me fazem pensar em Dom Carlos Escayola – murmurou.

– Em quem?

– Dom Carlos Escayola era o pai de Gardel. Mandava e desmandava, no seu tempo, em Tacuarembó. Era um homem de bigodes retorcidos e alma.

– Não sabia.

– Como podem ser ignorantes os brasileiros, Vito – zombou.

– Você o conheceu?

­– Claro que não. Morreu em 1915.

      Então, como se estivesse em transe, estremecendo de quando em quando, ele me contou o que todos sabiam, menos eu, dos três casamentos de Escayola, com as irmãs Oliva: Clara, Blanca e Maria Lelia. Ainda ouço sua voz se apequenando quando chegou a certo ponto.

– Dom Escayola foi padrinho de batismo de Maria Lelia. Quando ela tinha 13 anos, fez-lhe um filho. A Igreja autorizou o casamento.

– Por que precisou de autorização da Igreja?

– Era incesto padrinho casar com afilhada.

      Fiquei saboreando a história que, saída dos lábios dele, parecia grandiosa. Falou longamente sobre a paixão de Carlos Escayola pela música, disse que o povo lhe colocava nas costas mortes que não teriam a sua assinatura, contou que lhe atribuíam 50 filhos, mas que não seriam mais do que 48, e destacou o seu amor pela arte e pelo sexo.

– Não podia viver sem fornicar – disse, e sorriu como se tivesse falado algo indevido ou pecaminoso. Era, no fundo, um homem pudico.

      Eu sabia da polêmica sobre o local de nascimento de Gardel, mas ignorava tudo sobre os detalhes dessa suposta origem uruguaia. Eleutério me olhou firme. Havia uma gota de sangue nos seus olhos:

– Gardel, o filho de Dom Escayola e de Maria Lelia. Percebes?

      Eu não percebia realmente a enormidade dos fatos. Para mim, ouvinte sazonal de tango, Gardel era filho de certa Berthe, cujo sobrenome, Gardès, viraria Gardel em Abasto, nos subúrbios de Buenos Aires, bairro do mercado inspirado nos Halles de Paris. A mãe de Berthe – por que eu me lembrava disso? – teria sido dona de uma chapelaria. Quando lhe disse isso, Eleutério, envergonhado, arrancou o “chambergo” da cabeça e como que se desculpou com o dono do café.

– C’est ça – disse no seu francês sibilante.

– É isso o quê?

– A mitologia. Tudo em torno de Gardel é fumaça e mito – afirmou.

      O garçom magérrimo, como se estivesse nos ouvindo, mexeu na velha jukebox. A voz de Gardel ecoou melancólica. Era “lejana tierra mía”. Eleutério Guimarães, sempre tão frio e racional, embargou a fala. Não sei até hoje se vi de fato a lágrima que senti rolar no seu rosto. Sobreveio em mim um estranho cansaço. Foi aí que lhe perguntei:

– Se Gardel nasceu em Tacuarembó, como foi parar em Toulouse?

      O rosto dele expressou um cansaço inexplicável maior do que o meu. Uma ambulância passou. O florista que nunca sorria surgiu na porta com o seu avental verde.  No outro da rua de Vaugirard, na pracinha Camille Claudel, via-se o cartaz de um filme de Mathieu Kassovitz, estrela ascendente do cinema francês. Lia-se o título facilmente: “La Haine”. Havia ódio no olhar de um homem na mesa ao lado. Era um ódio somente contido que procurava um ponto de fuga. A conversa caiu com a tarde. Eleutério fechou-se num mutismo como se eu não estivesse ali. O tango morreu na máquina saudoso da terra distante. Nunca soube o que ele procurava em Toulouse e na vida.

      Busquei nas livrarias uma biografia de Gardel. Alguma coisa me desviou do caminho até que um jornalista bêbado, numa noite em que estive sozinho no café onde encontrava Eleutério Guimarães, me contou que também investigava a vida de Gardel e que ele teria praticado pequenos crimes na juventude e mudado de identidade algumas vezes para escapar da prisão. Foi categórico: ele nasceu em Toulouse. Ponto.

– Consegui uma cópia da folha corrida policial dele – contou.

– Do Gardel?

– De quem estamos falando?

– O que ele fazia?

– Dizia que tinha uma herança para receber num lugar distante e pedia adiantamento de dinheiro para ir buscar a sua fortuna – soprou.

      Por longos meses, esqueci dessas histórias, especialmente depois que Eleutério Guimarães desapareceu para nunca mais voltar. Numa tarde de inverno, entrei no café. O garçom magérrimo me abordou sorridente:

– Lembra do uruguaio do chapéu preto?

– Lembro sempre. Eleutério Guimarães

– Eleutério Guimarães Escayola

– Como?

– Esse era todo o nome dele.

      Saí dali determinado a nunca saber a verdade.


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