Conto: Tio Lia no seu cotidiano

Conto: Tio Lia no seu cotidiano

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Tio Lia

 

      Cinco horas. Tio Lia levanta. Todo santo amanhecer. Faz 48 anos que repete os mesmos gestos precisos. Ergue-se do catre, veste a bombacha, recolhe o poncho de baeta encarnada com o qual se tapa, lava o rosto numa bacia branca esmaltada. Tira de sob a cama um penico que faz par com a bacia. Vai até o fundo do pátio jogar a urina fora. Durante muito tempo, saía para o pátio no meio do noite e aliviava-se olhando as estrelas ou sentindo o vento frio no rosto crispado. Já não tem saúde para enfrentar a intempérie. Urina cada vez mais. Acende o fogo, prepara o mate, busca o petiço no potreiro atrás do rancho. Nunca muda a ordem das suas ações. Toma o seu chimarrão sentado num banco rústico de madeira de espaldar alto. O seu único conforto é o pelego vermelho sobre o qual se abanca.

Faz frio. O minuano ainda sopra. Amanhece tarde e cinza. Tio Lia anda na escuridão sem tropeçar. Conhece cada palmo do chão que o sustenta. Um galo canta melancolicamente. Um pássaro pia. Todos na mesma ordem. Sempre. Quando tio Lia mateia, seu olhar perde-se num fundo infinito. Parece estar vendo muito longe. Talvez não esteja vendo mais do que um palmo adiante dos seus olhos castanhos esmaecidos pelo tempo. Talvez nem procure ver. Flutua. Toma oito mates. Ao final, sabe que está na sua hora. A bombacha que veste é parda. As paredes que o cercam, deixando passar por velhas frestas o vento úmido do final de agosto, são cor de tábua sem pintura. Acima do fogão à lenha, o único colorido é o de um calendário com a imagem da virgem Maria adornada com um manto azul. Uma folhinha de 1953. O dia 23 de novembro está assinalado com um xis. Tio Lia não se lembra a razão. Entre um mate e outro, ocorre-lhe de pensar nisso. Procura um motivo, um nome, um acontecimento. Nada. O galo canta. Desiste.

Tio Lia encilha o petiço zaino. No passado, tivera cavalos altos e rápidos. Já não consegue levantar a perna muito alto. O petiço é mais fácil de montar. Mesmo assim, se for para cavalgar sem estribos, encosta o animal na raiz de um cinamomo cortado sabe-se lá quando – um verão de 1964? – ou recorre a um banquinho de três pernas. O petiço não se move. Tia Lia tosse. É uma tosse seca. Herança dos 40 anos em que fumou palheiros para distrair o tempo. A sua casinha tem três cômodos: quarto, sala e cozinha. Na sala, onde nunca fica, jaz um rádio ABC. Faz mais de vinte anos que deixou de ouvi-lo. Acabaram-se as pilhas. Esqueceu-se de comprar outras.

A maioria ainda dorme na vila quando tio Lia, montado no seu petiço manso como um cão velho e cansado de batalhas e rodeios, toma o seu rumo diário. Outrora, mas isso faz tanto tempo que nem se lembra quanto, seguia-o um cachorro baio. Morreu picado por uma cobra. Tio Lia inspira o ar de manhã. É um dos gestos mais intensos que repete invariavelmente. Parece experimentar um grande prazer. Passa diante de uma casa branca com muitas janelas azuis. Dentro dela, uma mulher sacode um menino na cama. Tem a voz rouca e triste.

– Levanta, guri. Tio Lia já passou.

Quando chove ou faz muito frio, tio Lia usa o mesmo poncho que lhe serve de cobertor. Só a cola, a cabeça e as patas do petiço ficam de fora. Um chapéu marrom de aba larga cobre a cabeleira basta e branca do velho. Alguns fios estranhamente negros insistem em desvirtuar a geada que lhe devasta a cabeça. O trajeto de tio Lia é sempre o mesmo, embora tenha duas possibilidades: a rua da frente e a rua de trás. Passa na frente do bolicho onde, décadas antes, apeava, no retorno, ao final da tarde, para um gole de cachaça. Atravessa os trilhos sem olhar para os lados. O último trem passou há 13 anos.

*

Por um segundo, tio Lia desvia os olhos da estrada arenosa à sua frente. A primeira luz do dia abre uma clareira no horizonte. No seu lado esquerdo, surgem as águas da lagoa irisadas pelo vento. Criança, tio Lia jogava pedrinhas na água para produzir círculos. Ninguém o batia. As suas especialidades eram essa e as pandorgas. As suas sempre subiam, não coleavam e pairavam no ar como geometrias coloridas. Tio Lia passa pela lagoa sem parar. Jamais faz o petiço diminuir o trote. Uma luz, porém, parece embaçar o seu olhar. Ali, poucas vezes nadou, salvo para resgatar seus patos e marrecos. Cavalga com as rédeas soltas sobre o pescoço do cavalo. O que poderia lhe dizer? Como ele, o petiço faz os mesmos gestos desde sempre.

A lagoa fica para trás. A superfície enrugada das águas permanece na mente do homem até se fundir com a imagem seguinte. Uma floresta de troncos de eucaliptos cortados por uma motosserra. Tio Lia não usa metáforas. Para quê? Com quem? Nunca ouvirá a palavra metáfora. Fala cada vez menos. Ouve, no máximo, vinte palavras por dia. Mas pensa em árvores abatidas. Essa expressão aflora nos seus lábios secos. Não tem pelos eucaliptos o apreço que vota às pitangueiras e outras árvores da mata que margeia o arroio da sua infância. Ainda assim, seu coração se aperta diante daqueles restos.

Aperta os calcanhares na barriga do petiço. No seu caminho, cada lugar tem sua história. Na tapera da direita, de onde se via o trem passar resfolegando como um cavalo cansado, um soldado se enforcou. Saberá um dia o motivo? Na chácara da esquina, uma esquina que não existe mais, um marido matou a mulher. Não se impede de pensar: como pode uma esquina deixar de existir? Cinquenta metros à frente, novamente à esquerda, viu, em 23 de março de 1942, a mulher mais bonita que a vida lhe permitiu contemplar. Quem fim terá levado?

Ela povoa alguns dos seus sonhos. Faz tempo que não os tem. As suas noites são visitadas com mais frequência por pesadelos dos quais pouco se lembra, salvo de um corpo de homem flutuando numa barragem. Essa imagem, às vezes, deixa-lhe um gosto amargo na boca e uma sensação de ressaca que carrega enquanto se desloca para o trabalho. Demora para dissipar-se. Faz o petiço apertar o passo. Precisa chegar cedo. É uma ideia estranha, pois nunca se atrasa. Também jamais se adianta. Suspira. O animal responde com um trote mais sustentado.

Mais adiante, ao fundo, avista a fachada de tijolo de uma casa que lhe assombra desde a primeira vez. Por que nunca encontrou um jeito, em tantas décadas, de desviar-se para conhecê-la? Não tem tempo a perder. Entra na parte do percurso que mais gosta. Um longo trajeto plano cercado de verde. No alto das coxilhas, alguma casinha branca. Quando pensa em paz, pensa nessa parte do seu caminho diário. Ao longe, o cerro de Palomas. Um platô que lhes faz pensar nos poucos livrinhos de faroeste que leu na vida. Adolescente, amava subir o cerro para soltar pandorga e contemplar outros platôs, tão próximos e tão distantes, que nunca se atreveu a visitar apesar de se encontrarem a um galope de cavalo. O petiço diminui o passo. O dia já venceu a escuridão. Tio Sia enche os pulmões. Ninguém sabe que se dá esse desfrute todas as manhãs. É um dos seus segredos mais sagrados.

Um fio de água corta a estrada avermelhada. O silêncio é tamanho que se ouve o borbulhar da água. Peixinhos coloridos escondem-se na parte um pouquinho mais profunda, junto à cerca que separa um sem fim de campos muito verdes da estradinha que serpenteia como se estivesse perdida. O petiço muda lentamente a sua trajetória. Não obedece a qualquer comando. O rosto de Lia é um manuscrito, um pergaminho, um campo cheio de sulcos onde, algum dia, talvez tenha florescido um sorriso ou um desejo intenso. De quê? Nada se revela. O petiço para. Tio Lia apalpa a própria cintura. Cada gesto marca a lentidão de uma vida que se esvai. Tem uma faca prateada atravessada nas costas. Ergue os olhos. Avista o pequeno cemitério sobre a colina. Um túmulo verde, outro azul, um branco, outro sem pintura. Noutros tempos, usava também um revólver de cabo de madrepérola.

Remexe na sua guaiaca. Tira uma massa branca, que asperge na água. Farelos de pão. Uma nuvem de peixinhos colore a linha d’água. O rosto do ancião não se altera. Algo dentro dele é que se mexe. Um observador muito atento perceberia uma súbita luz no seu olhar opaco.

*

O caminho da paz é finito. O cemitério toma o lugar da massa verde dos campos. O sol lambe o alto dos túmulos. Um boi muge não muito distante. O barulho de um automóvel, na estrada asfaltada do outro lado da nesga de pasto à direita, chega como um ronronar. O petiço, por conta própria, para diante de um mausoléu. Um medalhão amarelado guarda uma foto apagada. Já não é possível identificar o rosto ali sepultado. Tio Lia tira o chapéu. Fica por alguns instantes imóvel. Não reza. O que faz? Em que pensa? Não move um músculo. O petiço estremece. O velho sabe que está na hora de seguir. Cobre a cabeça. Avança. Mais alguns metros e estará diante da casa do cego. Sabe que nessa hora ele já se encontra à janela farejando passantes.

Todo dia, bom ou ruim, tio Lia chega à porteira do seu destino. Em quase 50 anos, faltou duas vezes. Uma por doença. A outra, numa segunda-feira, por uma razão que jamais confessou. Apeia, abre passagem, puxa o cavalo para dentro do campo, fecha. Poderia soltar a rédea. Não o faz. Para quê? O petiço não fugiria. Não importa. Questão de técnica. É um procedimento. Como tal, deve ser respeitado. O patrão prometera-lhe, sem que pedisse, uma cancela que pudesse abrir sem apear. Não cumpriu. Não se vê cobrando. Seria uma confissão de fraqueza e de cansaço. Um passo para a aposentadoria forçada. Jamais se permitiu qualquer reclamação. A última parte do percurso é ainda mais solitária. Até a possibilidade de cruzar com alguém é nula. Nunca aconteceu. A paisagem é de uma beleza dolorida. Nas três árvores, que sempre lhe surgem como um acontecimento ou uma referência, pássaros mantêm seus ninhos. Já lhe ocorreu de acompanhar a construção de uma casa, por joão-de-barro, como se fosse a sua.

O último passo é a travessia do pequeno arroio antes da casa onde passa os seus dias. Cada vez que o transpõe, sente que deixa algo importante para trás. A jornada de trabalho é monótona. Tudo se repete há décadas. Cabe-lhe rachar lenha, limpar os chiqueiros, tirar água do poço, dar comida para os animais, varrer os pátios e fazer pequenos reparos. Quando chove, passa horas no galpão engraxando velhas cordas ou fazendo novas. Troca seis frases por dia com seus patrões. Todas na mesma ordem, da chegada à partida. Duas no almoço.

Retorna antes do anoitecer. É um percurso mais rápido. Sem paradas. Ganha doze minutos. A vista da lagoa ao anoitecer o faz suspirar. Ao passar diante do bolicho, onde os homens se reúnem para jogar truco, beber e maldizer a sorte, ouve sempre um comentário:

– Eta, velho Lia. Cravadinho na sua hora.

– Dizem que guarda segredos terríveis.

O petiço apressa o passo. Já não o cumprimentam. Sabem que não responde. Balançam a cabeça. Quando venta, ainda lhe chegam, com hálito de cachaça, outras frases que nunca deixam de ser ditas:

– Um grande desgosto, parece.

– Não foi um crime?

Não ouve o resto: teria rompido com a mulher ao tentar dar-lhe um beijo no rosto. Ela estava terminando uma costura e o afastara. Teria jurado nunca mais dirigir-lhe a palavra. Jurado e cumprido. Mais de trinta anos de silêncio total. Depois, enfim, a separação.

– Não, isso não foi o Lia. Foi o outro.

*

Tio Lia desencilha. Lava o lombo do petiço. Dá-lhe uma ração de milho. Solta o animal no potreiro. Acende o fogo. Prepara o chimarrão. Há muito que não janta mais. Toma oito mates. Precisa não exagerar. Qualquer excesso custa-lhe uma noite dura. Joga a erva fora. Lava a cuia. Escruta os céus para saber o tempo que fará. Senta-se sobre o pelego vermelho e fica, à luz da lamparina, esperando a hora de dormir. A sua sombra projeta-se na parede. Jamais dorme antes das nove horas. O tempo escorre lentamente. Ele passa a sua vida a limpo. Revê tudo o que fez. Lembra-se de cada viagem da vila ao trabalho. Sabe o exato momento em que fez a sua escolha.

A emoção, de vez em quando, arranca-lhe o que ninguém pode imaginar: uma lágrima. Ela desce pelo seu rosto como o fio de água onde borbulham os peixinhos coloridos. Tio Lia permanece imóvel. Petrificado. Apenas lambe o sal. Espera que passe. O vento sopra. Uma coruja pia. Repentinamente, quebrando uma rotina de tantas décadas de solidão, tio Lia seca a lágrima. O gesto impensado o assusta. Sente o coração oprimido. Fraqueja. Agarra-se ao que pode. Quer ainda viver. Promete-se fazer tudo diferente na manhã seguinte. Arrasta-se para o catre. Tira a bombacha parda. Deita-se. Faz muito frio. Puxa até a cabeça o poncho de baeta encarnada. Dorme. Sonha. Depois, é acossado pelo seu eterno pesadelo. Acorda sobressaltado. Pouco lembra. O galo canta. Um pássaro pia. Levanta-se. Veste a bombacha parda. Recolhe o poncho de baeta encarnada. Lava o rosto na bacia esmaltada. Leva o penico até o fundo do pátio. Está muito leve. Urinou várias vezes. Só uns pingos. Acende o fogo, prepara o mate. Vai buscar o petiço.

Chama-o como faz desde sempre: “Tiço, tiço, tiço...” Não obtém resposta. Não ouve o resfolegar do animal. Onde pode estar? Sempre o espera próximo à porteira. Sente que lhe falta o ar. As pernas já não o sustentam. Faz muito frio. Busca um apoio. Está longe da cerca. Desaba. Quando acorda, o sol está alto. Um fio de sangue empapa a sua camisa parda. Um corte no rosto arde-lhe como uma brasa na mão. Firma as duas mãos na terra e ergue-se com extrema dificuldade. O corpo inteiro lhe dói. A cabeça gira. Sabe que está queimando de febre. Não pensa no patrão. A única imagem que lhe vem é a da água irisada da lagoa. Depois, sem razão, uma pandorga vermelha no céu azul. E o trem dobrando junto à casa do enforcado. Põe-se de pé. Respira fundo.

Percebe que está um lindo dia. Como poderia saber que é o primeiro dia de setembro? O ar puro e fresco o faz renascer. Move uma perna. Oscila. Move a outra. Sorri. Está caminhando. Mexe os lábios. Busca as palavras no fundo de si. Sente que está vazio. Sussurra:

– Tiço, tiço, tiço...

Joga-se para frente. Anda. Cambaleia. Promete não se entregar. Por fim, enxerga o animal. Um corpo inchado estendido no chão. O seu rosto de pedra se decompõe como uma figura estilhaçada. Balbucia:

– Então, finalmente ficaste livre de mim!

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