Conto: tradição e preconceito

Conto: tradição e preconceito

Fraude e homofobia em 1930

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Estamos em 1930. Ano eleitoral. Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal, apresenta o seu programa: “Por vários motivos que não vem ao caso relatar, o Brasil é o terreno preparado para as revoluções. Cabe aos espíritos verdadeiramente patriotas adotar medidas conciliatórias no interesse do país. Se houvesse liberdade de voto, seguras garantias ao eleitorado e isenção de ânimo da parte do presidente da República, não há dúvidas que os candidatos da Aliança Liberal poderiam triunfar”. É o que ele pensa?

É o que ele torna público: “Nas circunstâncias atuais, com o que se tem visto e praticado, com o que se prepara e apregoa, tudo leva a crer que esta será vencida pela compressão e pela fraude”. O político gaúcho quer ser o condutor de uma nova mentalidade, de um espírito portador de novas aspirações, contra a tradição da hipocrisia, da mentira, das manipulações e do coronelismo dominante.

A sua voz é metálica: “Nos Estados do Norte, não há eleições, na verdadeira significação do termo, nem mesmo alistamento regular. É o regime das atas falsas, preparadas adrede, sem comparecimento dos eleitores, nem reunião das mesas eleitorais. A votação se alarga de acordo com a vontade dos governadores e pelas informações que já prestaram e compromissos que assumiram o candidato oficial terá a maioria absoluta, sem que as oposições consigam comparecer às urnas. Nesses Estados, as oposições só conseguem votar quanto o governo federal se interessa por elas, exercendo certa vigilância. No caso presente, porém, o presidente da República não só apoia como aconselha essas medidas de compressão e fraude. Tendo, por sua vez, o candidato oficial a maioria o Congresso, este se encarregará de homologar o trabalho fraudulento das máquinas oficiais”. O desafiante clama por mudanças reais.

Em Porto Alegre, Rose vibra com o que lê na imprensa. Getúlio representa o seu pensamento. É mulher. Está fora do jogo. Oitenta anos depois um modesto escritor descreverá esses momentos vividos intensamente por essa moça de 20 anos: “A hora da eleição chega. Ao longo do mês de fevereiro, jornais governistas denunciam a existência de conspirações nos quartéis. Osvaldo Aranha minimiza ou desmente. Getúlio Vargas retira-se para a sua cidade natal, a distante São Borja, disposto a esperar o resultado eleitoral no seu habitat, a campanha gaúcha”. Mateando.

“É um homem estranho, ensimesmado, complexo. Ouve mais do que fala, mas quando fala sabe comunicar. Na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, havia entusiasmado cem mil pessoas com a plataforma da Aliança Liberal: anistia e liberdade de pensamento e de imprensa; legislação eleitoral, voto secreto, leis trabalhistas e sociais; criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, industrialização do país, proteção aos produtos e interesses nacionais, valorização de outras culturas além do café. Recebera felicitações do mineiro Afonso Pena Júnior, implicado na Aliança, pela eloquência, assim como de Epitácio Pessoa, tio de João Pessoa, o Borges de Medeiros da Paraíba, uma raposa de algum fino trato”.

O Brasil vai dar um salto, pensa Rose. O singelo escritor resumirá: “Jamais um comício reunira tanta gente antes. Nunca os trabalhadores haviam escutado tantas promessas relacionados com os seus interesses. Aquele programa já é uma revolução. Em 14 de maio de 1932, no entanto, em manifesto, Getúlio Vargas, na condição de chefe do governo provisório, sofrendo forte oposição e acossado pelo ‘fogo amigo’ de gente como seu antigo escudeiro João Neves da Fontoura, dirá com todas as letras: ‘O programa da Aliança Liberal continha muita coisa aproveitável, mas, somente ele, não bastava para satisfazer as necessidades e as conquistas e da revolução’”. O país entra em ebulição.

“Se a Aliança Liberal promete salário mínimo, férias pagas e desenvolvimento da indústria siderúrgica, Júlio Prestes faz juras de amor aos fazendeiros e ao mundo rural. A fazenda é descrita como o ‘lar brasileiro’. No vaivém das negociações, ‘Geitúlio’ tentará prever todas as possibilidades. O Rio Grande do Sul tem fama de fazer oposição. Em 1922, apoiara a Reação Republicana, apostando em Nilo Peçanha contra Artur Bernardes. Vargas temerá, em algum momento, a derrota e as represálias dos vitoriosos”.

O escritor fará um trabalho de síntese: “Tramará, por intermédio de Firmino Paim, um acordo ardiloso com Washington Luís. A ideia era que se lançasse um terceiro candidato. Um nome de consenso. O plano fracassa. Paim, ainda assim, consegue um pacto de não-agressão com o governo federal pelo qual Vargas se compromete a não fazer campanha fora do seu Estado e a reconhecer e apoiar o adversário caso este seja eleito. Em contrapartida, se Vargas for eleito, Washington Luís se obriga a não contestar o resultado. O destino e os homens desejarão que não seja assim. Getúlio sai para ler a sua plataforma. Deseja, no entanto a conciliação”. Nunca mais terá paz.

Em 1938, Rose será presa ao sair da sua casa.

– Comunista, a bichinha?

– Lésbica.

 

 

 


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