Conto: um cavalo

Conto: um cavalo

História de uma grande amizade

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Contava-se, embora infelizmente não se tenha registrado a fonte, que Sexto Empírico teria dito que para Sócrates nenhum evento estranho acontece menos de três vezes. Sexto Empírico não deixou isso escrito. Sócrates também não. Como se sabe, embora não custe repetir, foi Platão quem escreveu por Sócrates. Os escritos de Sexto Empírico haviam desaparecido, mas reapareceram na segunda metade do século XVI. Não se sabe onde Sexto Empírico nasceu. Diógenes Laércio teria dito que Sexto era grego e para ele todo grego mentia. Ora, Diógenes era grego. Logo, mentia. Logo, falava a verdade... É sabido, como se vê em páginas do cego Borges, que o silogimo bicornuto sempre ressurge. Quantas vezes? Ao menos, três.

Esta, porém, não é uma história sobre silogismos nem sobre o filósofo e médico cético Sexto Empírico, muito menos sobre o argentino Borges, mas sobre um cavalo batizado de Empírico, o sexto animal de um homem chamado Laércio, amigo de João Domador. Depois do que vai ser narrado, com precisão e sinceridade, o mesmo fato teria acontecido outras duas vezes. Não adianta, portanto, reclamar autoria ou protagonismo, pois se trata aqui da primeira vez em que o estranho episódio teria ocorrido. Ele chegou a mim pelo próprio João Domador, a quem conheci numa aula de filosofia e tango num subúrbio de Montevidéu por volta de 1998. Ele estava com 98 anos de idade e esbanjava memória e agilidade nas mãos e nos pés. Tentei jogar truco com ele e perdi. Ele cansou minha mulher no tango.

A história em si é simples: um homem e seu cavalo. Certas circunstâncias não interessam. Por exemplo, o que fazíamos em Montevidéu. Na verdade, não faço parte da história. Apenas a recolhi da boca do veterano João Domador, que a considerava a melhor história da sua longa e atribulada existência. Aparências enganam. João nunca montara um cavalo. O apelido de Domador vinha da sua capacidade de domar burros. Havia sido, no seu tempo, o melhor professor de matemática de toda a Fronteira Oeste.

Peço ao leitor que preste atenção. Se por acaso se distrair, pensará que se trata de plágio de outra história, muito semelhante, ou de adaptação rasteira dos temas do já citado contador de causos Borges, que, segundo informavam fontes seguras, embora não o velho Domador, esteve em Palomas, onde teria discutido o silogismo dilemático no bolicho do Rubens. Não se falava bicornuto para não provocar Pedro Galhudo, que levara dois chifres, nada entendia de filosofia e puxava a faca por qualquer palavra.

Amizade – Vamos à história. Laércio vivia sozinho com seu cavalo Empírico, um alazão fulgurante. Corriam juntos. Sim, juntos. Láercio gostava de exercícios físicos e precisava manter o seu cavalo em forma. Todo dia, ao nascer do sol e ao cair da noite, corriam uma hora. Um trote cadenciado. O único gosto – vício segundo os seus críticos – de Laércio era o jogo. Não resistia a uma disputa. Um dia, enquanto corria com Empírico, parou ao lado deles uma camionete Ford azul. Dela desceu um homem de terno de linho branco. Era primavera. Fazia pouco mais de 20 graus. A noite ainda demoraria a descer. O homem tirou os seus óculos escuros e provocou:

– Aposto que você não aguenta duas horas correndo com o seu cavalo.

      Laércio ficou vermelho. Sempre enrubescia quando desafiado. Não aceitava propostas sensatas. Deu logo o troco na sua melhor medida:

– Aposto a sua camionete como o cavalo cansa antes de mim.

– E se você cansar antes o que eu ganho?

– Minhas terras.

      O estranho topou. Laércio e Empírico começaram a correr em torno da vila, que era protegida por uma espécie de cinturão de areia fina. Passaram a noite correndo. Quando Empírico queria parar, Laércio o fustigava com uma vara de marmelo. Correram 36 horas e 23 minutos marcados nos relógios. O homem passou a noite acordado, sentado na sua Ford, controlando os movimentos do homem e do seu cavalo. Foi do seu posto de observação que viu o cavalo dobrar as patas dianteiras, ajoelhar-se e cair. Um ataque fulminante. Morreu soltando uma espuma branca pela boca.

      O que se viu, então, surpreendeu a todos: Laércio deitou-se sobre o corpo do cavalo estendido no chão e chorou como uma criança. Chorava e pronunciava palavras incompreensíveis. Só se entendia uma frase inteira:

– Tu foste meu único amigo.

      Ainda vejo o rosto de João Domador, um pergaminho repleto de inscrições, descrevendo minuciosamente esse final, que abreviei por não ter espaço para muitos diálogos e por detestar histórias cujos finais são adiados por digressões. O quase centenário João Domador sussurrava:

– Existe algo mais verdadeiro do que o amor de um homem por um animal?

      A noite caía melancolicamente sobre o rio da Prata. Escutando Carlos Gardel e tomando mate amargo nós pensávamos em Laércio e no seu majestoso cavalo alazão Empírico. João Domador era palomense. Era sabido que todo palomense, ao menos uma vez na vida, mentia. Logo, João Domador mentia. Logo, falava a verdade. Uma coisa é certa: o cavalo Empírico existiu. João Domador tinha uma foto dele. Uma foto tirada pelo próprio Laércio.

 


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