Corpo, Guedes e aula

Corpo, Guedes e aula

Retalhos do feriadão

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    Eu vi o corpo estendido no chão. Era o corpo de um homem médio como eu, magro como eu, grisalho como eu, rodado como eu, com os pés certamente gelados. Então eu vi o menino que saía daquele corpo como um pássaro que se liberta da sua gaiola e não sabe o que fazer das suas asas. Havia uma gota de suor no rosto do homem deitado na calçada úmida e estreita. Enquanto eu contemplava aquela face desconhecida, pensava no caminho de todos os homens médios como nós, inclusive, talvez, tu, leitor, que me espia com esse ar desconfiado, esse ar que volta e meia adotas achando que não percebo, de quem não está entendendo essa entrada de jogo e quer logo saber: quem é o morto?
– Tem cada vez mais – disse uma mulher que passava.
    Um verso de um poeta lido na escola, pois sou dado a me lembrar de versos ao mesmo tempo em que esqueço de amarrar os sapatos, abriu um clarão na minha cabeça coberta com um boné para esconder a devastação do tempo: “Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia assim! De um sol assim!” O sol, porém, já se escondera e, como dizia outro poeta, até o vento mundo de lugar. Há pessoas, leitor, que ostentam uma segurança incrível. Mesmo se não brilham no quem fazem, têm todas as certezas do mundo em relação aos que fazem o mesmo e classificam os demais em prateleiras imutáveis. Chego a invejá-las. Onde colocar o homem estendido no chão, que está vivo, não morreu, ainda bem.
    Caminho por entre vivos que se espalham no chão sem provocar alarde. Vivemos o tempo da indiferença e do cansaço. Nas manchetes dos jornais na banca de revistas leio que um russo, Dimitri Muratov, e uma filipina, Maria Ressa, ganharam o prêmio Nobel da paz pelo trabalho que fazem em defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa em seus países dominados por governantes autoritários. Lutam por fatos. O homem no chão é um fato. Há mais gente dormindo nas calçadas. As opiniões sobre esse fato divergem. Há várias interpretações. Umas enfatizam aspectos individuais; outras, sociais.
    No reino dos vivos, homens tombam nas ruas enquanto os carros esperam na esquina o sinal verde para avançar. Carregam no ventre tesouros que evaporam deixando marcas internacionais. Em casa, leio Murilo Mendes: “Me colaram no tempo, me puseram/uma alma viva e um corpo desconjuntado”. Um corpo de homem médio, rodado, pés gelados.
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Anteontem, pelo zoom, falei, a convite de Philippe Joron e Martine Xiberras, para estudantes de sociologia da Universidade Paul Valéry, Montpellier. As aulas presenciais voltaram. Falamos de jornalismo, pandemia e do futuro. Jovens olham para frente. A França terá eleições presidenciais em 2022. Éric Zemmour, jornalista e escritor de extrema direita, que entrevistei em 2019, aparece em segundo lugar nas pesquisas, com 17% das intenções de voto, mesmo sem ter partido nem ser candidato. Ele enfrentaria Emmanuel Macron num segundo turno. Perguntei, na época, a Zemmour o que pensava da Frente Nacional de extrema direita Marine Le Pen. Respondeu assim: “É um instrumento extraordinário de resistência ao politicamente correto”.
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Paulo Guedes, o ministro que guarda sua fortuna num paraíso fiscal e ganha enquanto a população brasileira perde, mandou cortar 92% da verba destinada à pesquisa. Um homem atrás do seu tempo.

 


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