Crônica caribenha

Crônica caribenha

Uma reflexão sobre o calor

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 Eu detesto frio e não me convenço quando me dizem que no inverno basta se agasalhar e está tudo resolvido. Nem quando falam que o frio é ótimo para ficar perto da lareira e tomar um vinho. Não bebo álcool há muitos anos. O frio é um estado de espírito. Uma atmosfera. Não tem agasalho que elimine o cinza, o vento gelado e a falta da luz solar de muitos dias. Verão tem cara de alegria e de vida intensa. Se tem uma coisa, porém, que não se discute é esta: gosto pelo frio ou pelo calor. Para mim, francamente falando, temperatura média boa é 30 graus. O tempo passa e eu sinto cada vez menos calor e cada vez mais frio. Afirmam que só pode ser problema de circulação. Concordo. Circulação de bom humor, de entusiasmo, de energia existencial. Sou um vegetal.

 

      Preciso fazer a fotossíntese. O verão tem, devo confessor, um grande problema: ar condicionado. Virou uma obsessão das pessoas. Dou razão a elas, que sentem calor. Eu não sinto. Carro de aplicativo é quase uma maldição. Parece que estou no inverno suíço. Depois de alguns minutos, tudo fica nebuloso, melancólico, artificial. Começo a desconfiar que o inverno chegou sem avisar ou que viajei sem perceber. Uma tristeza vai tomando conta de mim, ainda mais quando roda uma daquelas músicas de elevador de prédio fashion, e vou murchando. Quando a porta, enfim, se abre, recebo o ar quente como uma benção: o verão não foi embora, a natureza existe, a vida continua sendo a de sempre.

      Ando pelas ruas escaldante com um casaco no braço para me proteger da vida artificial. Fico impressionado (sic) com a temperatura dos aeroportos. Para que gastar tanta energia, até no inverno, transformando ambientes coletivos em câmaras frigoríficas?  Não sou contra ar-condicionado. Também uso. Só que em doses moderadas. Uma noite inteira de temperatura induzida tecnologicamente acaba com a minha garganta. Definitivamente, como me diz a Cláudia, eu não sou normal. E a Cláudia quase nunca erra. Que mania de sempre acertar. Teimar com ela é como enfrentar a memória do Magno e do Carlos Guimarães, nossos colegas da Rádio Guaíba. Eles são como Funes, o memorioso, personagem de Borges, não esquecem nada. Uma loucura.

      Eu esqueço tudo. Só guardo o que desmitifica. E lembranças do frio. Imagens perfeitos do frio na Hungria, na Alemanha, nos alpes suíços, um Natal numa estação de inverno, temperatura de menos 25 graus em Berlim, neve em Praga, céu cinza em Paris por 27 dias seguidos, onze invernos gelados em sequência na Europa, vários como morador, outros como visitante, trens impedidos de circular por causa dos congelamentos, os canos do nosso “studio” (JK) em Paris estourados pelo gelo. Minha memória do frio é cortante. Recordo cada detalhe das conversas que tive com Michel Houellebecq na Patagônia. O frio conserva a minha memória. O calor me faz existir. Dizem que no futuro todos os ambientes, inclusive os externos, terão ar condicionado. Espero já ter partido quando essa tecnologia frigorífica tomar conta do mundo. Os 28 graus naturais com brisa da República Dominica me servem perfeitamente.


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