Crônica: do mosquito aos filhos

Crônica: do mosquito aos filhos

Os males do Brasil são

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 Quando eu era jovem, há séculos, achava que os detalhes não contavam. Acreditava que tudo se decidia no atacado. Ria de quem pensasse o contrário. Certa vez, um amigo francês veio nos visitar em Porto Alegre. Ele havia lido muito sobre doenças tropicais. Temia os mosquitos. Viu um lá em casa. Adoeceu. Nós o levamos ao Pronto Socorro. O médico, muito gentil, ficou encantado de poder atender em francês. Ao final, desculpou-se por não encontrar doença alguma em nossa hóspede. Debochamos muito. Meu amigo foi visto como um europeu etnocêntrico e principalmente exagerado.

      Hoje, eu sou igual ao meu amigo. Todo ano, visito São Miguel dos Milagres, em Alagoas, um paraíso de beleza natural indiscutível. Eu me lembro de passar tardes inteiras, em outros anos, escrevendo à sombra de mangueiras. Os mosquitos me lanhavam as pernas. Eu não dava a mínima. Desta vez, senti uma coceira. Olhei para baixo. Um mosquito havia me picado no calcanhar direito. Entrei em pânico. Eu tinha lido que picada nas canelas equivale a dengue com certeza. Cláudia me chamou de louco. Comecei a fazer cálculos. Considerei que eu estava com 50% de chances de ter contraído dengue, zika ou chikungunya. Perdi o sono por alguns minutos imaginando que eu poderia vir a ter síndrome de Guillain Barré. Fui para a internet. Aprendi que os sintomas da dengue costumam se manifestar em de três a quinze dias depois da picada. Ainda não estou salvo. Conto os dias.

      Aí eu me pergunto: o que aconteceu comigo? Estou mais consciente? Mais chato? Mais sugestionável? Menos leve na vida? Será que não voltarei a São Miguel dos Milagres de medo dos mosquitos? Eu colocava repelente no corpo todo dia, fechava as janelas cedo, procurava perceber qualquer ataque dissimulado. Como foi que me picaram no cotovelo direito, na barriga da perna esquerda e no já citado calcanhar? O lugar onde ficamos é maravilhoso. Nada de água parada de qualquer natureza. Os mosquitos ignoraram a Cláudia. Por que me escolheram? Será que ando liberando alguma substância que os atrai ou que revela medo ou preocupação excessiva?

      Não sou mais o mesmo. Agora, penso muito nos detalhes. Beatrice, ao final do grande livro de Graham Greene, “Nosso homem em Havana”, finalmente unida ao ex-vendedor de aspiradores na capital cubana e agente secreto de ocasião, “compreendeu qual seria o principal problema no futuro que os aguardava: ele jamais seria suficientemente maluco”. Será que estou condenado a nunca mais ser novamente maluco o suficiente para não ter medo de mosquitos? A vida é loteria. Como sair de casa sabendo que o mosquito errado pode estar a postos? É uma questão que antes eu não me fazia.

      Fiquei pensando que picada de mosquito é mais angustiante que outros ataques de bichos maiores, inclusive humanos. Leva muito tempo até saber se sobreviveremos ou se teremos sequelas. Como dizia o genial Guimarães Rosa, viver é muito perigoso. Minha avó também achava isso. Está liberado atirar em mosquitos. O problema é que nunca vejo quando eles me abordam.  Um mosquito revela um estado de espírito e uma nova visão de mundo.

Há muitos mosquitos na vida do governo de Jair Bolsonaro. Se ele se descuidar, os filhos derrubam tudo. Mas há também ministros infectados. Bebbiano é um deles.

 

 


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