Crônica do perfeito imbecil

Crônica do perfeito imbecil

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Um leitor me parou na rua e falou sobre meu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social”. Ele disse se chamar Antônio Vieira. Explicou: “Claro que não é o meu nome verdadeiro. Não quero ver meu nome numa coluna de jornal”. Era magro, tinha barba branca e vestia um terno escuro. Falou coisas assim: “Você é um perfeito imbecil, Juremir. Escreveu um livro definitivo na hora errada. Vamos começar pelo título: algum conservador vai comprá-lo? A mídia vai recomendá-lo? A revista Veja vai dar espaço? Claro que não. Num país cada vez conservador e dividido, um livro assim está fadado a não existir. Perdeu, brother”.

Esse primeiro jato me deixou impactado. Pensei em sair correndo. Foi impossível. Ele me bloqueou o caminho: “Você mostra que o Brasil de hoje reflete o Brasil de ontem: escravocrata, elitista, reacionário, aproveitador, cheio de esquemas, uma terra do levar vantagem em todas as situações. Acha que vão elogiá-lo por esbofetear assim a maioria? Acha que vão fazer de você um novo Laurentino Gomes, um Lira Neto, um Ruy Castro, um Fernando Morais? Que ingenuidade, se escreverem uma linha sobre o seu livro será para esculhambá-lo. De fato, você é um Lima Barreto branco. Chuta o balde e espera consagração. O seu livro é tão bom que será visto como muito ruim”.

Tentei me consolar pensando que, como crítica, é um bom elogio.

Ele tratou de me enquadrar: “Ninguém vai gostar do seu livro. Tem pesquisa demais, novidade demais, estilo demais. O ano de 1888 não interessa a ninguém. Os brancos transformaram a abolição numa concessão da Coroa. Os negros, por causa disso, fogem dessa data incômoda. Quem manda é a mídia. Você não gosta dela e ela não gosta de você. Politicamente também não tem saída: a direita acha que você é petista. A esquerda não confia em você. A Casa Grande o odeia. A senzala não lhe ama. Vou lhe dar um conselho mesmo sabendo que ninguém gosta de ser aconselhado: pendure as chuteiras. Você escreveu uma grande obra, um novo Raízes do Brasil. Nunca mais publique coisa alguma. Viva silenciosamente da sua realização mesmo sem prêmios”.

Confesso que senti a estocada. Ando sensível. Quem será esse Antônio Vieira? Ele me deu pistas que não me levam a lugar algum: “Não tente saber quem eu sou. Estou mais próximo do que imagina e mais longe do que seu braço curto pode alcançar. Já passei por você na rua. Acho que deveria levantar mais a cabeça enquanto caminha. Notei que fica meio atrapalhado com as tantas pessoas que o cumprimentam. Imagino que depois desse esforço todo você se sinta um tanto perdido. Ande por aí. Fale do seu livro em todos os lugares possíveis. Deixe acontecer. Pode ser que, como Lima Barreto, você seja descoberto dentro de cem anos. Não baixe a cabeça. Não se entregue. Eu sei o que digo. Estudei tudo isso. Se não publiquei um livro foi por preguiça”.

Agora ando pelas ruas meio de lado. Tento enxergar Antônio Vieira no meio da multidão. Já me confundi algumas vezes. O nosso encontro foi na Sete de Setembro. Por que não fiz uma selfie com ele?

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