Crônica: meus órgãos

Crônica: meus órgãos

Elogio da doação

publicidade

Tem certos dias, suaves ou outonais, que eu penso em mim de um modo diferente. Não escolho pensar assim. É algo que me vem de um golpe. Abro uma fresta da janela, espio a rua e sou levado pela correnteza. Deixo de lado atributos recorrentes, aqueles que fazem uma identidade: santanense, colorado, palomense, jornalista, professor, apaixonado pela Bossa Nova, por jazz e MPB. Esqueço Paros, Paris, Porto Alegre e Palomas, lugares que estão pendurados nas paredes da minha memória afetiva. Como me vejo então nesses dias em que o sol cai preguiçosamente ou que já há folhas amareladas nas calçadas?

Eu me vejo apenas como um conjunto de órgãos.

      Sou pulmões, rins, fígado, coração, córneas e o pacote todo. A gente vive com tudo isso e procura não pensar em como funcionam. Só se lembra deles quando gritam ou param de funcionar. Já me peguei tendo uma conversa com meus pulmões. Era um papo de bar regado a água mineral. Algo assim:

– Tudo bem aí, meus pulmões?

– Numa boa.

– Ar puro?

– Não temos do que reclamar.

– Também acho. Não fumo.

      A mesma conversa posso ter com meu fígado. Não bebo. Já com meus rins o buraco é mais embaixo. Na última vez que falamos, foi bem assim:

– Opa, que houve amigos?

– Carregando pedra, cara.

– Dói demais!

– Culpa sua!

– Minha?

– Sim. Você não toma água.

– Não sinto sede.

– Precisa tomar dois litros de água por dia.

– Dois litros!

      Fui terrível. Urrei de dor. Foi a terceira peça que o rim direito me pegou uma peça. O da esquerda, devo dizer a bem da verdade, nunca me sacaneou. Será que é uma questão ideológica? Apaguei. Parei no hospital. Pari uma bigorna em poucos minutos. Beijei a lona. Deve ser a dor que uma mulher sente ao ter filho, mas sem a beleza do nascimento. Com o meu coração, o danadinho, tenho conversas mais frequentes e amistosas. Ele se porta bem. Se disparou algum dia, foi por excesso de emoção ou ansiedade. Como não sair do ritmo quando a bateria de uma escola de samba invade um salão de baile e coloca todo mundo em ponto de ebulição? Como não bater mais forte quando a vida parece dar um salto de alegria? Fora disso, bate dentro do peito como quem diz, eu aceito, vamos em frente, olé! Breque.

      Aí, sem mais nem menos, eu penso: quando eu morrer, quero doar meus órgãos. Tudo o que for aproveitável, que seja aproveitado. Para que levá-los comigo, ou queimá-los com minha carcaça, se podem viver no corpo de outros? Quero estar em muitos. Radicalizo: todo cara enterrado com um órgão vivo e que pode continuar vivendo é um assassino. Ou cúmplice de assassinato. A ideia é forte? Peguei pesado? Talvez. Sei que razões religiosas podem impedir doações. As religiões são deste mundo e também se transformam. Penso em meu coração colorado batendo no peito de um gremista e sorrio. Como se entenderiam? Simples: o coração tem razões que até a razão desconhece. De qualquer maneira, imagino meu coração no gremista dando pinotes diante de um gol do Inter num Gre-Nal. Romantizo? Certamente. Recuso-me a pensar que o coração seja apenas uma bomba.

      Uma bomba sou eu como um todo, sempre prestes, não a explodir, mas a bombear sentimentos e ideias, não necessariamente úteis ou profundos, mas cheios de poesia, boa ou ruim, de idealismo e de sonhos que não terminam ao amanhecer. Eu gostaria também de doar os meus dedos, estes mesmos que dedilham este texto, ora hesitantes, ora lépidos, ora vigorosos, ora sem saber o que escolher. Uns digitam bem mais do que outros, mas todos se entendem para comunicar o que sinto nesta livre sinfonia de órgãos.

      Disse o poeta Mario Quintana, que sabia muitas coisas, inclusive dar boas e inspiradas respostas aos chatos que pululam, pulam e ululam quando menos de espera, o que desespera: “Quando eu for, um dia desses, poeira ou folha levada, no vento da madrugada, serei um pouco do nada, invisível, delicioso”. Nesse dia, quero viver no corpo de um menino, de uma mulher, de um velho apaixonado pela vida, de alguém que leve adiante este gosto pelas pequenas coisas e este suave espanto diante do amanhecer. Sendo possível, estabeleceria uma única condição para doar meus órgãos:

– “Redoe” se não for usar mais ou se tiver a infelicidade de morrer.

 

     


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895