Dívida de brancos com negros

Dívida de brancos com negros

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Meu Nobel

 

Conheço Luiz Maurício Azevedo faz alguns anos.

Ele fez parte de uma bela aventura, a criação da editora Bipolar, que lançou meu livro “Mal dito”. Estudava Letras na PUCRS. Depois disso, andou pelo mundo. Fez doutorado na sua área na Unicamp. Passou uma boa temporada em doutorado sanduíche nos Estados Unidos de onde retornou craque em temas que muitos negam por aqui. Voltou para o Rio Grande do Sul. Maurício é um intelectual brilhante e sofisticado. Negro. Cito esse aspecto por uma razão que o leitor em seguida entenderá. Ele escreve cada vez melhor num tom espontâneo, coloquial, verdadeiro.

Recebi dele este e-mail: “Juremir, a partir de setembro vou dar uma cadeira chamada ‘Ideias críticas na literatura brasileira’, como parte do meu pós-doutorado lá nas letras da Ufrgs. Embora eu tivesse reunido já uma boa bibliografia, estava achando que faltava a cereja do bolo. Na última sexta-feira, meio que por acaso, estava na Fnac e vi o teu livro. Peguei para fazer uma leitura panorâmica. Sentei numa daquelas poltronas pretas bem duras, ao lado de uma senhora que conversava no celular com um certo Silviano, sobre umas supostas milhas aéreas que ele havia utilizado sem autorização. Quando dei por mim a mulher não estava mais lá. Passavam das três, cara. Perdi completamente a noção do tempo. Tinha lido sem parar. Que livro. Tu sabes bem que eu sou teu leitor desde o Viagem ao extremo sul da solidão (que li em 1999 por sugestão do Volnyr Santos). Contudo, o entusiasmo de agora não tem nada a ver com o julgamento anterior. Raízes do Conservadorismo Brasileiro é uma daquelas obras-primas que mudam a interpretação que um país tem de si mesmo. Os brancos desse país têm uma dívida com os negros, mas tu ficou muito próximo de quitar a tua. Parabéns, cara. Abraço, Mauricio”.

Abri um espumante.

Um espumante imaginário. Trabalhei muito um aspecto dessa história infame no meu livro “Raízes do conservadorismo brasileiro”: a abolição do tráfico de escravos. Explorei minuciosamente a primeira lei a não pegar no Brasil, feita para inglês ver, a lei de 7 de novembro de 1831, que precisou de nova e definitiva versão em 1850.

Escrevi: “A justiça foi um dos maiores sustentáculos da escravidão no Brasil mesmo quando possuía instrumentos legis para agir em defesa do princípio da liberdade e da dignidade humana. A lei de 7 de abril de 1831 não pegou porque grande parte dos juízes não quis respeitá-la. Pode-se afirmar que a justiça boicotou a lei que proibia o tráfico, o parlamento fez que não viu, a sociedade mostrou-se indiferente e os traficantes agiram como se nada houvesse. Contra a Lei Feijó prevaleceu a lei da oferta e da procura, a lei da ganância, do lucro pelo risco, e a lei dos interesses articulados por baixo do pano. Só bem mais tarde é que juízes abolicionistas praticariam um ativismo jurídico antecipado, que seria explorado por um ex-cativo, advogado de escravos ilegais, o heroico Luiz Gama, como instrumento de luta. Muitos desses juízes ousados foram expulsos das suas casas por proprietários de escravos injuriados com sentenças desfavoráveis”.

O reconhecimento de Luiz Maurício vale como um Nobel.

Lavei a égua nesta guerra de guerrilha. Está rodando a segunda edição. Uau!

 

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