Da “quebrada” para o sucesso no mundo da literatura

Da “quebrada” para o sucesso no mundo da literatura

Entrevista com José Falero

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Não é todo dia que alguém conquista a atenção da crítica literária nacional em tão pouco tempo. José Falero, em dois anos, passou do anonimato à condição de escritor aplaudido e resenhado nos grandes jornais. Com “Vila Sapo” (Venas Abiertas) e “Os supridores” (Todavia), escalou de um salto a íngreme encosta do reconhecimento. Ganhou em 2010 o Prêmio Jacarandá de revelação literária do Correio do Povo. Com uma escrita ágil, fulminante e sem formalismos, impressiona pela força do texto, pela verossimilhança dos personagens e pela crueza das situações. Admirador de Machado de Assis e de Edgar Wallace, autodidata, José Falero parece ter chegado para ficar. Vale conferir.

Caderno de Sábado – Uma resenha de “Os supridores”, num importante jornal, te classificou como grande autor da literatura marginal.

José Falero – É uma alcunha problemática. Eu particularmente não me incomodo, mas sei que isso incomoda. Às vezes convém e às vezes não convém, esse lance. É como se fosse uma literatura menor. Mas também tem outros usos. Eu, para mim, é de boa, não me importo.

CS – Para mim quer dizer uma literatura maior, de Jean-Arthur Rimbaud, de Charles Bukowski, de Henri Miller, de Jean Genet...

Falero – Só perguntando para o cara que escreveu o texto. Não sei o que ele tinha na cabeça quando colocou “marginal” ali.

CS – A tua vida mudou em função da repercussão do teu livro?

Falero – Mudou, cara. Tem muita coisa legal acontecendo comigo. Tem muita coisa ruim também, tá ligado? Eu sempre quis trabalhar com texto. Tenho tido reconhecimento, ganhado dinheiro, mas um exemplo que posso dar de coisa desagradável é que tenho andado muito mais ansioso e estressado, preocupado com coisas com que eu nunca me preocupava. Estou tendo que me tornar um cara organizado na marra. Tenho de anotar data de evento. Fico nervoso com as perguntas, fico nervoso de conversar com as pessoas nas entrevistas. Tudo isso me coloca num estado de ansiedade que eu nem sabia que era possível experimentar.

CS – A biografia de José Falero por ele mesmo.

Falero – Nasci em Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro, fiquei ali até os quatro ou cinco anos. Meu pai, que era porteiro na Cidade Baixa, foi promovido a zelador. Fomos todos morar lá. Aí meus pais se separaram e voltei com minha mãe para a Lomba do Pinheiro. A minha irmã ficou com meu pai por estar no ensino médio. No Parobé, minha irmã conheceu gente do teatro e começou a ler. Eu não lia livros. Não fazia sentido para mim. Minha irmã, quando já estava na faculdade, ia nos visitar no Pinheiro e tentava me convencer a ler. Um dia ela falou que a minha opinião sobre livros não servia porque eu não lia: “Lê um livro inteiro e depois vem falar comigo”, ela disse. Li só pelo gostinho de dizer não gostei. Só que aconteceu o contrário. Gostei do livro e do ato de ler.

CS – Que livro era?

Falero – “Besta-fera”. Um livro de lobisomem. Talvez hoje eu não gostasse. Comecei a perceber os prazeres que aquilo ali me proporcionava e que eu sabia que era particular da escrita e da leitura. Não tinha como conseguir aquilo vendo um filme, jogando videogame ou lendo quadrinhos. Li muito e chegou o momento em que eu quis escrever as minhas próprias histórias. Eu era ingênuo, achava que era a coisa mais simples do mundo. O meu pensamento até fazia algum sentido. Eu pensava que para escrever legal eu teria de me dedicar bastante, praticar bastante, estudar bastante. Uma vez que escreva legal, vou fazer um bom livro, vou apresentar para as editoras e eles vão ver ali a oportunidade de ganhar dinheiro comigo. Acho que essa ingenuidade contribuiu para que eu continuasse me empenhando como se fosse certo o reconhecimento. Eram ruins as coisas que eu escrevia. Eu percebia por ler muito. Eu achava que era uma questão de prática. Até que escrevi algo que me pareceu razoável. Escrevi “Os supridores”, tentei publicar, não consegui, escrevi outra versão dele, porque a gente amadurece como pessoa. Acabei publicando primeiro “Vila Sapo”, livro de contos. Aí uma série de coisas bacanas começou a acontecer. Pessoas da quebrada curtiam, da literatura, do jornalismo, da academia. Comecei a escrever crônicas na revista Parêntese. Então veio o convite para publicar um conjunto dessas crônicas na Todavia. Com a pandemia, adiamos. O Leandro Sarmatz, meu editor na Todavia, perguntou se eu não tinha uma narrativa longa. Falei dos “Supridores”, que ainda queria finalizar, mexer. Ele pediu para avaliar. Mandei. Começou a fazer um sucesso dentro da editora. Trocamos a ordem de publicação.

CS – Fui um dos primeiros a escrever sobre ti. Quando li “Vila Sapo”, vi que havia ali uma literatura muito poderosa.

Falero – O que eu mais gostava de ler era narrativa longa, romance. Eu me preparei para isso. A oportunidade que veio era livro de contos pela questão financeira, quando a editora Venas Abiertas abriu as portas para mim. A Karine Bassi moveu céus e terras para a gente publicar. Ela conseguiu dinheiro emprestado. Era limitado. Mesmo sendo de contos, não dava para fazer um livro com muitos contos. Só seis histórias. Contos curtos. Talvez as pessoas pensem que é mais natural escrever narrativa curta e que a narrativa longa será mais difícil. Comigo foi o contrário. Passar ao conto e à crônica foi difícil pelo espaço que eles não te dão para desenvolver ideias. Saía de proporção.

CS –  Tens a pele clara. Teu pai é negro?

Falero – Meu pai e minha mãe são negros. O meu pai tem a pele no mesmo tom que a minha. A minha mãe e a minha irmã têm a pele um pouco mais retinta.

CS – Tu te vês como um escritor negro?

Falero – É a mesma coisa que o pensamento sobre o autor marginal da literatura. Não vejo problema. Mas isso tem vários significados para diferentes pessoas. Eu vejo problema quando o termo é usado...

CS – Para te colocar numa caixinha...

Falero – Exato.

CS – Editoras poderosas, como Cia das Letras e Todavia, passaram a publicar jovens autores negros como Jeferson Tenório, Itamar Vieira Júnior e tu. Faz parte de uma nova sensibilidade contra o racismo?

Falero – Todo fenômeno social depende de vários fatores. Um deles é esse. Isso passa inclusive pela política pública. Vai olhar o perfil da rapaziada que começou a chegar na universidade, por causa da questão das cotas e tal, e isso muda o debate. As pessoas que estão se formando professores trazem esse debate à tona, de questão de gênero, raça, classe. O inédito é como se debate isso agora de forma ampla. Mas tem um fator que é a grana. Tem uma demanda reprimida por esse tipo de literatura. Não são só essas pessoas que já leem, mas também pessoas que não veem muita graça na literatura e que podem ser atraídas por essas obras. Elas pegam esses livros e vão se identificar com a estética da capa, do próprio texto, da linguagem, dos exemplos que acontecem na trama. Tudo isso tem mais a ver com a realidade dessas pessoas. É mais provável que elas se interessem do que se pegarem um livro dentro da tradição da literatura brasileira de branco, classe média publicando. O cara pega o livro e não se identifica com nada. São fatores que contribuem para o que temos.

CS – Eras aluno de EJA. Terminaste? Trabalhavas com gesso? Estás agora, nesta nova fase, vivendo de literatura?

Falero – Faz algum tempo que vivo das coisas que escrevo, dos contratos, das palestras e mesas que vou participando. Quando comecei a escrever eu não estava estudando. Quando publiquei meus primeiros textos no facebook talvez eu estivesse fazendo mais uma tentativa no EJA. Passei muitos perrengues para entrar no EJA. De fazer a matrícula e não ter dinheiro para xerox. Ou não ter para a passagem. Era andar três horas a pé. Escrevi uma crônica sobre isso. Eu me formo neste semestre, agora. Aula a distância. Quanto ao trabalho, velho, eu fazia de tudo, mas, especificamente, era auxiliar de gesseiro com meus manos, numa pequena tradição que tem na minha quebrada lá, uma rapaziada que mexe com gesso há pelo menos três gerações. Mas trabalhei noutras coisas, auxiliar de cozinha, em supermercado. Quando eu saía desses trampos eu ia falar com eles, era uma coisa recorrente. Eu sinto falta, imagina trabalhar com os caras que tu te criou. Sendo bem franco contigo, tem uma preocupação entre a rapaziada do movimento negro, uma consciência de que as pessoas negras, mesmo negro de pele clara como eu, não vai ter perdão quando elas retearam em público. A sociedade parece menos tolerante com essas pessoas do que com as brancas. A pessoa negra é massacrada. Agora sou uma figura pública e isso me coloca num estado de estresse. Fico com medo de falar uma besteira, pois não sou perfeito. Tenho medo que me cancelem. Sinto falta de quando trabalhava sem medo de ser julgado. Podia fumar um cigarro, tirar a camisa. Eu seria perfeitamente feliz trabalhando como eu trabalhava pelo resto da minha vida. O problema é a precarização: horas demais, esforço demais, ganhar pouco, trabalhar em lugar que não tem banheiro, não tem uma torneira, voltar fedendo no ônibus. Eu chegava tão cansado que não conseguia ler, quanto mais escrever, só queria ver tevê, jantar e dormir. Não tinha energia para nada.

CS – É mais fácil para homens entrar nas grandes editoras?

Falero – Não tenha dúvida disso, velho. Se levar em consideração o colorismo, é mais fácil até para os negros de pele mais clara. Para além da questão de gênero. Eu fiquei muito feliz com o que aconteceu com “Vila Sapo”. Aí um tempo depois me chegou um livro chamado “Perifobia”, da Lilia Guerra, uma mulher preta, publicado pela Patuá. Dá de dez no meu livro. Trinta contos, um livro gordo, contos maravilhosos que se passam na quebrada também. Ela teve reconhecimento, finalista do prêmio Rio, vencido pelo Geovani Martins, meu bruxo. Com todo respeito por ele, o livro dela merecia ganhar. Fiquei com vergonha pelo que aconteceu com “Vila Sapo”. Tem muita gente produzindo bem e não conseguindo acesso por ser mulher, por ser gay ou por ter a pele mais escura do que a minha, tá ligado?

CS – Existe uma cultura da quebrada, da periferia, que tu trazes para os teus livros como um rapper traz para a sua arte?

Falero – Eu não chego nem perto do que a rapaziada do rap faz. Não sei como foi o processo dos Racionais, ou do rap de modo geral, mas se for olhar no início tem essa proposta estética, tem esses valores, está na raiz. Eu me deixei levar pelo contexto preconceituoso do nosso país. Eu achava que existia o jeito certo de escrever e o jeito errado. Eu achava que escrevia errado e me esforçava para aprender a gramática normativa. Passei muitos anos estudando isso e praticando isso. Mesmo escutando Racionais eu não consegui pensar isso sozinho. Precisei aprender em relação, como ensina Paulo Freire. Conversando com um linguista da Bahia, Marcos Oliveira, uma madrugada toda, é que me caiu a ficha e pensei a linguagem, pela primeira vez, como instrumento de dominação. Vi que o jeito que eu escrevia era violento comigo mesmo. Violento com o jeito que a minha mãe se expressa, meus vizinhos. O “Vila Sapo” foi a primeira coisa que eu experimentei. Não acho que tudo tem de ir parar no lixo, que a gramática não interessa, tem gente que é radical. Gosto de gramática, acho importante formalizar as coisas. Mas eu trago uma cultura que não poderia deixar de trazer.

CS – Tu te sentes porta-voz da tua quebrada?

Falero – Não. Quando eu publiquei “Vila Sapo” eu já tinha um pouco de noção disso: não sou porta-voz de coisa alguma. Quando penso nas quebradas que conheço, não sou a figura mais indicada para representar esses lugares. Tem gente muito mais representativa. As pessoas têm a sua voz, com diferentes perspectivas. Isso ficou ainda mais claro enquanto eu escrevia, pois eu queria trazer uma coisa plural dali. Era difícil. Mais pessoas da quebrada têm que ter acesso à máquina da cultura, ao produzir música, filmes. Não posso assumir esse lugar porque elas veem a quebrada de outra perspectiva, diferente.

CS – Como elas reagem ao teu sucesso?

Falero – Nem sei se é sucesso. Achei muito legal como as pessoas receberam o “Vila Sapo”. Tinha um cara lá que não lia. A esposa dele era professora. Ela comprou meu livro para ele, que trabalhava numa obra. Ele me falou: “Puxa, cara, nem sou de ler, mas peguei teu livro e não podia parar, queria ir adiante”. Quando eu trabalhava no supermercado, fui puxar assunto com dois seguranças. Eram mais velhos do que eu, que tinha uns 18. Eles, uns 25. Estavam falando sobre Dragon Ball. Falei assim: uns marmanjos vendo Dragon Ball. Eles disseram: e tu? Eu também via. Por causa de todo um contexto que não é culpa dessas pessoas, não estou falando de maneira crítica, o que bomba mesmo é o Dragon Ball. É isso que interessa. É o funk. A literatura, por tudo que já falamos, está muito distante. Elas vão debater Dragon Ball, Big Brother. Claro, tem uma pá de gente que lê, cada vez mais. Tem gente escrevendo poesia. Mas não é isso que bomba. Eu posso ganhar o Nobel de literatura. Isso não representa sucesso para aquelas pessoas, entende? São outros os valores.

CS – A imagem da periferia nos jornais e na classe média é de violência, tráfico, cultura do funk. São clichês? O que tu viveste?

Falero – Tem isso e outras coisas. O problema é que se tem acesso à periferia pela produção de pessoas que não estão lá. Uma pessoa de classe média escreve no jornal para outra pessoa de classe média ler.

CS – Daí a força da tua literatura. Tu escreves de dentro.

Falero – Eu tenho medo disso. Espero que não seja só isso. Hoje eu escrevo sabendo que serei publicado e que um número considerável de pessoas vai ler. Tenho medo de passar a minha visão da violência, por exemplo. Banalização da violência pela forma como eu a apresento. Os personagens debocham. É quase como se eu apresentasse uma quebrada indiferente à dor, ao sofrimento, à violência. Foi difícil. Eu tinha medo que as pessoas me acusassem de banalizar a violência. Vou contar uma história. Eu ria dessa história. Talvez alguém de fora fique escandalizado. Uma guria na minha quebrada tomou uma facada. Meu primo me contou isso. Tem uma comerciante lá com certa fama de fofoca. Todo comerciante tem isso. Circula muita gente. Ela espalhou a história. Quem contou para o meu primo foi outra vizinha. Ele perguntou como ela tinha ficado sabendo. O engraçado é que a mulher tinha muita vontade de contar as coisas. A menina parou no hospital. Descobriram o endereço dela. Procuraram o estabelecimento comercial mais próximo de onde ela morava. Ligaram. A comerciante foi a primeira a saber. A vizinha foi lá e deu bom dia. A outra já respondeu: “Não está tudo bem”. A gente ria muito disso. Talvez pareça insensível rir disso, de uma história com uma mulher esfaqueada. O detalhe sinistro é o seguinte: não posso mais rir disso com meu primo. Ele foi assassinado. A irmã da menina que levou a facada também foi agredida. O pai delas foi agredido pela polícia. A irmã da comerciante encheu o marido dela de tiro por causa de uma briga familiar. A mãe desse meu primo tentou matar o pai dele com tiros. Ele não morreu. Um tiro saiu pela bochecha. Nas quebradas a morte está muito presente. E tu ali no meio. Não se pode colocar nas costas dessas pessoas o peso de banalizar a violência. A responsabilidade é de quem oprime, não do oprimido. Vivemos num contexto de violência absoluta, simbólica, policial. Na minha quebrada um policial parou num bar e perguntou se a gente tinha visto um guri. Falou que se visse era para avisar que iam dar um sumiço. É a coisa mais normal. Os caras somem. Violência em todo lado. Dá uma martelada no pé de uma pessoa cativa na tua casa. No primeiro dia ela vai gritar, chorar. Depois de dez anos batendo, ela vai rir. CS – A linguagem é muito ágil. É espontâneo ou tens de trabalhar muito para sair aquele fluxo da tua escrita?

Falero – Eu não escrevia assim. Ainda estou aprendendo, praticando, experimentando. Escrevi três versões dos “Supridores”. Na segunda versão em mudei alguns fatos, incluí personagens, tirei personagens. Nessas duas primeiras versões tamanho era o meu preconceito linguístico que nas cenas de tráfico os caras falavam como o narrador. Na terceira versão eu trabalhei só nos diálogos para remover isso e trazer essa coisa da oralidade. Gostei do contraste e mantive uma voz um pouco mais formal na narrativa. É um exercício que é uma delícia.

CS – Quantas horas por dia para escrever “Os supridores”?

Falero – Cheguei a escrever 15 horas por dia. Passei alguns meses desempregado. Só a minha mãe trabalhando. Vivendo às custas dela. Procurando trampo sem achar. Passei um momento difícil de depressão. Na quebrada tudo mundo achava que eu era louco. Acordava, tomava café com um cigarro e começava a escrever. Até dormir. Não era saudável. Não tomava banho. Depois, eu tinha que escrever no trabalho. Cheguei a rascunhar coisas na obra, no intervalo do trabalho. Eu levava um caderno e, se tinha alguma coisa importante para escrever, sacrificava o almoço. Quando trabalhei de porteiro era legal. Um ano de dia e dois anos de noite. A partir das dez da noite eu abria o notebook, tinha comprado um, e começava a escrever. Tinha a sensação de que era pago para escrever. Tem vários trechos que escrevi trabalhando no super.

CS – Como vês a literatura de Jeferson Tenório e Itamar Vieira Júnior?

Falero – Necessárias.

CS – O Brasil continua muito racista ou mostra sinais de melhoras com mais negros na mídia ou publicando por grandes editoras?

Falero – Tá dando uma virada, mas vou trazer uma perspectiva que talvez não seja tão otimista. Como bom servente de pedreiro que fui e ainda sou, vou fazer uma comparação. Os progressos que temos feito são como passar uma lixa na parede. Farelinhos caem: eu publicando na Todavia. Farelinhos que se desprendem da estrutura de poder. Tinha que pegar um trator e atropelar essa estrutura. Precisamos de políticas públicas mais eficazes para transformar a sociedade numa outra mais igualitária.


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