De Casablanca a Borges
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Nada mais charmoso, envolvente e cinematográfico. O mítico Cidadão Kane seria o segundo. Colocaria O Leopardo na bagagem por Claudia Cardinale.
Faz 50 anos que Humphrey Bogart, o galã de Casablanca, morreu.
Não era lindo, nem alto como os outros da época, e pagava mico com as mulheres, até que se casou com Lauren Bacall e não se separou mais. Era o cara. Impossível não reverenciá-lo. Na ilha, eu chamaria o vento de Sam e pediria a ele para tocar novamente “As Time Goes By”. Por segurança, levaria algumas gravações comigo, de Frank Sinatra a Nat King Cole e Louis Armstrong. Aproveitaria para carregar um pen-drive, para o caso de ficar sem sinal de internet, com músicas de Miles Davis, do Chico Buarque, Lupicínio e Buddy Guy.
Sei, só se pode levar uma coisa de cada gênero para a ilha. As regras são estritas e o Caronte não aceita propina para deixar passar um Caetano Veloso, um Cartola ou um Beatles. Talvez um Noel Rosa, que sempre tem brecha no sistema. O que eu levaria para ler? Meu volume das Obras Completas de Borges. Ninguém foi melhor do que ele no século XX. Ninguém. Se Pelé foi melhor do que Maradona, Borges dá um baile em nossos melhores escritores, de Machado de Assis a Guimarães Rosa. Sinto muito. De partida para a ilha, não posso amarelar, né?
Creio que eu passaria bons anos na ilha lendo Borges, ouvindo Miles Davis e escrevendo poesia. Pediria permissão especial, na primeira oportunidade, para ter um aplicativo da Rádio Guaíba, de modo a acompanhar o futebol e a política, e acesso ao Correio do Povo. Estou pervertendo as regras? A gente sempre tenta. Por que não um mix de música clássica? Consumo dez horas por dia de todo tipo de música. Seria razoável até poder ampliar esse tempo musical na ilha, sempre reservando algumas horas para ouvir o vento, o silêncio, a vida e o tempo.
Que mania essa de ilha!
E de lista dos melhores de todos os tempos. O poder de classificar é afrodisíaco. Que não consegue fazer, adora hierarquizar, julgar, rotular e distribuir pontos. Como ninguém viu nem ouviu nem leu tudo, todas essas classificações são fraudulentas. Até mesmo as nossas respostas são provisórias. Tem dias que gosto mais de Chuck Berry e de Bob Dylan. Não iria sem um deles para a ilha. Tudo varia. Menos a minha admiração por Borges, o Pelé da literatura.
Falta uma parte fundamental. Quem eu levaria para a ilha comigo? Por que ir para a ilha sozinho? Acabo de saber que posso levar alguém. Está no regulamento. Tem gente que pula essa página. Eu levo a Cláudia. Sempre.
*
A tragédia que levou o ministro do STF Teori Zavascky me fez revisitar minhas reflexões sobre a morte.
Sendo acidente, inscreve-se no insuportável jogo de roleta do destino.
Ninguém trama melhor do que ele. Salvo aqueles que podem se beneficiar com os acidentes. Não?
Itinerário
Escuro, escuro
Um ponto no futuro
Denso, triste, duro
Ah, como ainda dói!
Escuro como o futuro
Duro como a tristeza
Sólido, árido, eu juro
Um homem de porcelana
Uma imagem de Veneza
Mariana pondo a mesa
A cortina feito um muro
Lavadeiras sobre águas
Moças com suas anáguas
Pernas abrindo lençóis
Figurinhas em vitrais
Azul só de metileno
O céu como uma abóbada
Latas de anil turquesa
O cão deitado no portal
Soldado de chumbo abatido
A voz rude nos jograis
Uma alegria por semana
O vermelho da locomotiva
O desbotado da pátina
O preto quente dos trilhos
A fome ranhenta dos filhos
Escuro, escuro, escuro
Ponte sobre o rio impuro
Águas que nunca voltam
Ah, como isso me remói!
Na placidez da tarde
Com a febre que arde
O menino pergunta:
Pai, o que é a morte?