De que serve a tarde aos cavalos cansados?

De que serve a tarde aos cavalos cansados?

Vínculo de Maxi (e) e Tcheco Grêmio se encerra no final do ano

publicidade

Algo me obrigou a reler um texto de 2002.

"Os paranóicos  também têm inimigos. A frase de Ricardo Piglia, que tanto me fascina, dançava na minha cabeça a propósito do assalto à empresa de Roseana Sarney, da invasão estranhamente fácil da fazenda de FHC, da teimosia de Felipinho contra Romário e dos fracassos de tantos romancistas de qualidade. A tarde caía quente e sempre a mesma sobre uma travessa da Avenida Ipiranga. O mundo seguia no seu tranco indiferente. Perdido em meus pensamentos sórdidos de tão fúteis, eu me perguntava se clone tem alma, se a alma de um clone é a divisão por dois da alma da matriz e se um clone pode chorar com os dois olhos. Foi aí que tudo aconteceu.

Tudo aconteceu no exato instante em que eu me dizia com indignação: odeio Felipinho! O desastre ocorreu minutos depois de eu ter longamente conjeturado sobre quem será o vencedor de Big Brother Brasil. Eu pensava em livros geniais como “A religião dos fracassados”, de Nick Tosches, “O cântico da canalha”, de Vincent Ravalec, e “Extensão do domínio da luta”, de Michel Houellebecq. Grandes obras da literatura atual sobre o desgosto. Pensava nesses livros, mas sabia que o destino do clone me preocupava mais.

Foi aí que tudo ocorreu.

Tudo aconteceu sobre o asfalto escaldante do fim da tarde. O ônibus parou de repente. Uma carroça arrastava-se na rua coalhada de veículos. Cena banal. Ainda me lembrei de uma conversa ao telefone, no dia anterior, com o sociólogo francês Alain Touraine. O conselheiro do presidente não estava preocupado com Lula já, mas com a candidatura de Tarso Genro em 2006.

Seria essa também a inquietação de FHC. Mas aí tudo aconteceu.

Tão lenta e repentinamente quanto o vazio da tarde.

Nada mudou no céu. A tempestade não veio.

O calor permaneceu insuportável. Havia morte por todos os lados naquela ilha de vida em desaceleração. Até me recordei da poesia musical brasileira: “De que serve a tarde?” A interrogação persiste.

Eu já tinha cantarolado e pensado nisso com os olhos cansados de mar ou de campo. Algo se quebrou com o que aconteceu então.

O cavalo, de um alazão desbotado, ajoelhou-se.

A cena, já disse, não era nova. Muitas vezes, no Sarandi, vi o mesmo. Só que o efeito se alterou. Foi como se o silêncio da tarde injetasse veneno numa tragédia do cotidiano. Súbito, a tarde encheu-se de sentido, de impacto, de pasmo. A tarde já não era feita nem de azul nem de crepúsculo, mas somente de estupefação.

Ali, peço que me creiam, apenas ali eu soube que a tarde serve para chicotear nossa miséria.

O cavalo desabou. Bufou como se fosse um homem. Depois, encolheu também as patas traseiras. A baba esverdeada que lhe escorria dos beiços tinha algo de fuligem e de cansaço, mas antes de tudo ele exalava uma tristeza infinita, como se sofresse também por não poder mais resistir. No olhar do animal, estarrecido, não havia súplica nem raiva, talvez culpa.

Sim, o bicho sentia-se culpado.

Desesperado, o carroceiro lançou-se contra o moribundo. Primeiro, bateu-lhe com o relho nas ancas, no lombo, no pescoço, interminavelmente na cabeça. Só se ouvia o estertor do sacrificado. Um gemido. O homem perdeu o controle. Chutou o cavalo até cair por cima dele. A queda provocou-lhe um novo surto: esmurrou o animal até ficar banhado de suor, do seu suor, do suor do bicho. O trânsito parou. Alguns motoristas insultaram o carroceiro, que explodiu em soluços: “Mas vocês não entendem, vocês não entendem...”

Naquele instante compreendi que na declaração universal dos direitos do homem devia estar assegurado um direito ao ressentimento. Tive vontade de escoicear aqueles carros todos, reluzentes de pressa na cacofonia do engarrafamento, de abafar aos urros os gritos de indignação daquela gente incapaz de indignar-se. Mas eu não conhecia aquelas pessoas, nada sabia delas e já me punha a julgá-las. Por que me achava mais sensível do que elas?

Éramos todos hipócritas, querendo ter o monopólio da ética.

Senti-me piegas.

Envergonhei-me de encharcar de humanismo as ruas. “De que serve a tarde?” Como saber? Estávamos preocupados com as ocupações da noite.

Nem sequer esperei para saber se o animal morreu.

De que serve a humanidade?

Saí dali convencido de que aquele homem tinha, de fato, direito ao ressentimento.

Ou seria o cavalo?"

Felipão ganhou uma copa do mundo, partiu e voltou.

Tarso Genro é governador.

Li e reli "Uma barragem contra o Pacífico",  da incrível, inesquecível e original Marguerite Duras, que tem uma famosa cena de cavalo, uma das mais tristes da história da literatura. 

Passados 11 anos, vi novamente uma cena de cavalo  cansado.

No espelho da carroça, vi também os meus cabelos brancos.

Brancos como o tempo.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895