Defeito de alma

Defeito de alma

Quando tudo se esfumaça

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      Essas coisas acontecem quando menos se espera. O enunciado não é original. Nos tempos que correm, e como correm, original anda escasso. Talvez a cerveja. Certo é que, em se imaginando que haja algo certo, as coisas acontecem assim e não de outro modo. Quando se vê, paf. É assim que se fala, embora o texto escrito costume exigir gravata e até abotoaduras. Já repararam nas abotoaduras do ministro Luís Fux. Daria uma crônica se eu tivesse expertise no assunto. Tenho de medo de cometer deslizes com objetos tão impressionantes e magnificentes. Enfim, Anacleto caiu doente. É disso que trata esta reflexão escorreita.

      Doenças surgem de repente. Se o cara fuma ou bebe álcool, pode ser responsabilizado pelo seu infortúnio e estamos conversados. Se é sedentário, quem mandou não levantar o traseiro do sofá. A saúde cobra. Em tempos de pandemia, ainda que essa seja uma situação aparentemente superada, salvo pelas máscaras mais persistentes, o sedentarismo avançou. Alguns aproveitaram para decretar o triunfo da preguiça. Eu entendo essa tendência para a inércia. Para que se sacrificar quando é tão delicioso ficar parado? O problema é essa tal da conta, que sempre vem. Não estou conseguindo dominar as digressões, que é como se chama essa mania de fugir do foco. Anacleto fez todos os exames do mundo. Não escapou da colonoscopia. Foi radiografado, revirado, fotografado.

– Afinal, o que eu tenho?

      Essa era pergunta que fazia e que se fazia. Sem resposta. Na sua linguagem direta, que sempre foi homem de falar na cara o que pensava, decretou que estava com defeito. A máquina já não funcionava corretamente. Certo, tudo bem, a imagem, embora pobre, vale. Só não responde ao principal: qual defeito? Ele sempre havia imaginado como seria no dia em que lhe comunicassem a existência de um defeito grave. Até então os exames sempre lhe davam ganho de causa, por assim dizer. Aí, como se disse, foi pif e paf. Anacleto mudou de categoria. Passou a ter um defeito obscuro, estranho, sem causa aparente, complicado.

– Que defeito é esse?

      Anacleto era capaz de fazer essa pergunta até para os garçons dos bares que ainda frequentava. Não esperava resposta. Precisava, contudo, conversar. É sabido que doença dá panos pra mangas. Não fosse o risco, seria sempre bom para ter sobre o que falar. Quando ainda restam exames a fazer, mesmo invasivos, uma esperança se mantém. Algumas preparações são laboriosas: jejum, contraste, medo da claustrofobia, por aí. O que estava acontecendo com esse homem de espírito claro e posições nítidas? Quem procura, acha, especialmente doenças. O nosso personagem só não esperava um diagnóstico alternativo. Um dia, caminhando a esmo pelas ruas do seu amado bairro, deparou-se com uma mulher de olhos turvos. Sem essa cor, esclareço, a história perderia grande parte da sua força.

– Você perdeu a alma – ela disse.

      Primeiro ele se fixou no “você”. Depois, entendeu a mensagem. Agora, ele anda por aí com uma nova e devastadora pergunta:

– Como e quando foi que perdi minha alma?


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