Diário da quarentena (19): medo

Diário da quarentena (19): medo

Dia a dia de quem contraiu o virus

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      São muitas as etapas enfrentadas por quem contrai o coronavírus. A primeira é a da negação. Deve ser outra coisa, a gente se diz. No meu caso, embestei com uma faringite. Outro momento difícil é o da decisão sobre quando ir a um hospital. Disseminou-se um imaginário do medo da contaminação nos ambientes hospitalares. Ficar em casa parece mais razoável. Mas se o vírus já estiver incubado ajuda médica é essencial. Hospitalizado, é preciso lidar com a ansiedade e com a própria doença.

      A volta para casa representa uma linha de corte fantástica. A alta, porém, não quer dizer necessariamente que se está curado. Instala-se o medo da recaída e do retorno ao hospital. A cabeça da gente é uma máquina de preocupações, especulações e antecipações nem sempre realistas. Medir a febre pode funcionar como uma libertação. O segundo antes do resultado, porém, eleva a angústia. O tempo não passa. A contabilidade dos sintomas é feita sem parar. O que ficou para trás? O que parece estar voltando? Cada dia é uma vitória contra o ciclo do vírus. Depois do 14º dia começa uma nova etapa: ainda terá vírus? Os anticorpos já os expulsaram? A cabeça gira sem parar em busca de apoio.

      As pesquisas na internet são inevitáveis: qual o máximo de tempo que um vírus ficou ativo no organismo de alguém? A hora de dormir tem suas peculiaridades: como relaxar, desligar e cair suavemente no sono? Desligar a televisão, apagar a luz e fechar os olhos exige concentração, pensamento positivo e até alguma coragem. As primeiras luzes da manhã brilham como uma esperança: dormi bem, mais um dia. Começa a etapa do desejo de eliminar de vez a incerteza: testar de novo para saber se o organismo está livre do inimigo ardiloso. A mente dá um pinote: e ser der positivo? O espírito exige alguma lógica: se tantos dias se passaram, o pior deve ter ficado para trás, o vírus não pode ser eterno, a guerra torna-se então psicológica, emocional, mental.

      Há horas em que o medo faz estragos imprevisíveis. De repente, na metade da tarde, quando tudo parece sob controle, no meio de uma leitura agradável e fluente. Num minuto, tudo parece resolvido e quase se grita “estou curado”. No minuto seguinte a dúvida volta como um rato e vai roendo tudo. Nesses momentos, alguma palavra de conforto soa como uma iluminação e uma necessidade imperativa. A gente quer ouvir um simples “vai dar certo”, “paciência, é só uma questão de tempo””, “vai passar”. As buscas passam das pesquisas sobre medicamentos e vacinas para casos de recuperação. Quem se curou? Ficaram sequelas? Quais?

      O cérebro rebela-se: quer um parâmetro, aspectos recorrentes que permitam comparações e esperanças, constantes. Se foi assim com fulano, a gente se diz, terá de ser assim comigo. O jogo continua: certeza, esperança, dúvida, incerteza. É preciso distrair-se, mudar o foco, interromper a espiral da dúvida, agarrar-se ao que der tranquilidade. Os dias escoam assim, lentos e oscilantes. Às vezes, o medo é tão espesso que se poderia cortá-lo com uma faca. Depois, vem o alívio.


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