Diário da quarentena (21): escritores

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Dois grandes partiram

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Rubem e Roza

 

      O Brasil perdeu dois importantes escritores nesta semana: Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Fonseca era um gigante, especialmente do conto. Garcia-Roza começou tarde, aos 60 anos de idade, e brilhou na literatura policial. Não posso dizer que seja um grande leitor de Garcia-Roza, mas acho o seu detetive Espinosa muito bem construído, consistente. Fonseca e Garcia-Roza foram dois homens bem diferentes com uma paixão comum: contar histórias. O autor de best-sellers como “Agosto”, romance que lhe valeu fama internacional e muito dinheiro, teve uma vida reclusa depois de ter sido policial e até trabalhado no IPES, um dos organismos que prepararam o golpe de 1964.

      Os leitores de Rubem Fonseca sempre destacam, em qualquer conversa, o estilo direto e sem concessões do autor. A expressão “sem concessões” em literatura costuma significar sem romantismo, sem floreios, sem literatice. Quem lê os contos de “Feliz Ano Novo” percebe isso de cara. É uma radiografia (a tecnologia evoluiu, mas o termo ainda é válido) das misérias e paixões cotidianas. É interessante pensar que Rubem Fonseca foi uma pessoa discreta, reclusa, avessa a entrevistas e badalações, feliz no seu canto, alheio, em princípio, ao turbilhão das grandes emoções, mas de grande capacidade de observação e de reconstrução de situações sociais e existenciais vistas em algum momento. Sem contar, obviamente, a imaginação necessária ao escritor.

      Garcia-Roza foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, estilo pop, capaz de falar de filosofia para salas cheias quase com ar de guru. Se um foi mais introspectivo, o outro sempre mostrou facilidade para lidar com públicos. Se um buscou afastar qualquer intelectualismo da sua prosa, o outro forjou seus personagens a partir dos seus conhecimentos de filosofia e psicanálise. Num ponto, porém, eles se encontraram: o texto fluente para ser entendido por todos. Como pesquisador da vida de Getúlio Vargas, li muitas vezes “Agosto”. Tenho defendido que não se trata de um romance sobre Getúlio, mas em torno dele. O narrador não está na cabeça do presidente. Isso não é mérito ou demérito, apenas uma escolha narrativa do ficcionista.

      Partir aos 94 anos de idade, como Rubem Fonseca, está dentro da chamada ordem natural das coisas. Nem por isso elimina a dor da perda para familiares e a tristeza dos admiradores. O que pensava Rubem Fonseca da política, da vida, de ideologia, de literatura? Basicamente o que aparece nos seus livros. A sua aversão a entrevistas faz algum sentido: toda vez que um autor explica um texto parece que algo se perde. Certos escritores, como o francês Michel Houellebecq, desenvolvem uma técnica de respostas evasivas de modo a criar mais mistério do que esclarecimento. Precisa muita disciplina ou uma tendência natural para a eliminação de pistas. O que terá levado Fonseca a isolar-se e a rejeitar as insistentes propostas de jornalistas? O isolamento dele não era infelicidade nem falta de gosto pela convivência social. Tinha muitos amigos e sabia ser afetuoso.

      De Garcia-Roza, li “O silêncio da chuva”. Por que não li todos os seus livros? Falta de tempo ou de algum impulso psicológico. Quando ele começou a publicar eu andava muito envolvido com meus próprios projetos literários. Houve um tempo em que eu era implacável: via defeitos em tudo e todos. Hoje, estou mais aberto, mais capacitado para entender nuances, inflexões, influências e singularidades. Não fiquei melhor ou mais inteligente, apenas mais velho e com mais leituras. O tempo pode tornar amargo ou mais generoso, ressentido ou mais flexível. Claro que fui reler páginas de Rubem Fonseca e Garcia-Roza nesta semana infeliz.

      Passei bons momentos mergulhado no imaginário desses homens impregnados pelo Rio de Janeiro. Os cenários contaminam as narrativas, dão-lhes uma força extraordinária, modelam os personagens. Foi uma semana de perda de bons escritores. Outro que partiu, vitimado pelo coronavírus, foi o chileno Luís Sepúlveda, que estava na Espanha. Garcia-Roza, de 84 anos, estava com problemas de saúde há mais de um ano. Sepúlveda, de 70 anos, foi infectado em fevereiro deste ano. Era um sobrevivente da repressão pinochetista. O seu mais famoso livro tem um bonito e singelo título: “O velho que lia romances de amor”.

Eu vejo filmes. Um, imperdível, que vi no Now é recente, de Roman Polanski, “O oficial e o espião”, má tradução de “Eu acuso”, sobre o famoso caso Dreyfus, a condenação, no final do século XIX, de um oficial judeu inocente por espionagem em favor da Alemanha. Era o antissemitismo fazendo estragos. Um grito poderoso levantou-se em 1898 no jornal “A Aurora”, o do escritor Emile Zola. No seu artigo “Eu acuso” ele apontou um por um os militares envolvidos na armação. Foi condenado por difamação. Nascia o intelectual moderno. A quarentena permite, ao menos, ler bons livros e ver bons filmes. Magro consolo.


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