Diário da quarentena (23): ministros

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Mandetta era luz no obscurantismo

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      Acompanhei apático a briga entre o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente da República, Jair Bolsonaro. No auge da peleia entre eles eu estava mais preocupado comigo. Vi, do meu recolhimento forçado, Mandetta crescer e assombrar Bolsonaro. Cheguei a escrever, antes da crise se instalar de vez, que o ciúme faria o presidente devorar o seu ministro. Não fui vidente nem genial. Bolsonaro não suporta concorrência e vê ameaça em situações de mera colaboração. Fugaz, Mandetta teve os seus 15 minutos de fama, arrancando o ministério de Bolsonaro da sua abismal mediocridade. De repente, um médico desconhecido ofuscava um governo inteiro, inclusive estrelas como Sérgio Moro e Paulo Guedes, cada vez mais desaparecidos.

      Por que falar de Mandetta agora que ele é ex? Porque ainda se vê o rastro de luz que ele deixou no céu obscuro do governo. Apesar de contradizer-se por vezes para não perder o cargo ou por suposto dever de hierarquia, até o seu suicídio numa noite de domingo em tela nacional, Mandetta tornou-se uma figura séria no meio de um grupo de personagens folclóricos. O seu substituto, Nelson Teich, ainda não disse a que veio, oscilando entre encarnar o técnico que apregoa ser e o porta-voz escolhido por Bolsonaro para dizer em termos aparentemente científicos o que ele não consegue expressar em qualquer linguagem. No ministério de Bolsonaro esperava-se o brilho permanente de Moro, o que, por razões diversas, jamais aconteceu. Mandetta havia roubado a cena.

      Não é fácil ser ministro quando se tem de fazer um bom trabalho sem brilhar muito e contrariar o chefe em nome da ciência, o que transforma a contestação em vergonha para o contestado. Mandetta acumulou capital para outros voos. Será certamente candidato ao governo do seu Estado. Na queda de braço, conseguiu ser demitido, valorizando a sua trajetória. O que pretende Nelson Teich? Qual o seu projeto? Por que aceitou? O que fará? Vai relaxar o isolamento social? Vai negar o que escreveu antes de se encontrar com Jair Bolsonaro sobre a importância do ficar em casa neste momento? Todos fazem as mesmas perguntas. Teich até agora enrolou, desconversou, tergiversou, pulou.

      Bolsonaro parece admirar muito mais o estilo de Damares Alves, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo, os representantes da sua ala ideológica orgulhosa de ser o que é. Eles não brilham inadequadamente nem discordam do chefe. Repetem a ladainha aprendida com o guru Olavo de Carvalho. Falam a mesma língua de quem lhes garante o emprego. A lógica de Bolsonaro é cristalina: os fatos precisam adaptar-se aos seus interesses. Não pode um vírus qualquer atrapalhar os seus planos para 2022. Se a realidade não se dobra, invente-se uma realidade paralela.

      Assim vai o barco verde-amarelo, vagando entre gigantescas ondas, soprado por ventos enfurecidos, sacudido por tempestades brutais. Mandetta já era. Teich já é. E Bolsonaro? O tempo dirá. Quanto tempo? O tempo é filho das circunstâncias, que costumam só respeitar os fatos.

Ernesto Araújo denuncia o comunavírus que se espalharia com a OMS.

Para ele, o perigo, a partir da leitura crítica de Slavoj Zizek, teórico neomarxista, é o comunismo. De que será feito o seu cérebro?casa

Até o liberal Mandetta, do velho DEM, teve iluminações ao dizer que só a "Casa Grande está reclamando do isolamento social".

Uns pensam. Outros, deliram.


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