Diário da quarentena (26): Moro, Bolsonaro e Greene

Diário da quarentena (26): Moro, Bolsonaro e Greene

E agora, quem está mentindo?

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Quem está mentindo: Moro ou Bolsonaro?

Moro nocauteou o capitão ao mostrar mensagem de aplicativo.

Mas isso não prova que não tenho falado de ida ao STF.

Prova que Bolsonaro queria interferir na PF em defesa dos seus interesses.

A mensagem da deputada falando em STF também não prova que Moro, na conversa privada com Bolsonaro, não tenha falado da vaga no Supremo.

Os dois proporcionaram um dos mais tristes espetáculos da história da República. Lavaram roupa suja em pública sem direito a perguntas.

Que narradores!

Contam muito, mas não contam tudo. Precisamos preencher as lacunas.

Que material para um romance de Graham Greene.

*

Eu tive problema de concentração: não conseguia ler, ouvir música ou ver televisão. Quando melhorei um pouquinho, amigos começaram a me dar sugestões. Gilberto Schwartsmann insistiu para que eu revisse “Amarcord”, de Fellini. Fazia 15 anos que eu não via. Continua intenso e forte. Luís Gomes pediu que eu revisse “Noites de Cabíria”. Foi emocionante. Eu não conseguia ver telejornais. Descobri um canal cultural que eu nunca tinha visto: Curta! Vi ali programas e documentários deliciosos sobre a vida de Rodin ou de um músico negro baiano, Riachão, que morreu em 30 de março deste ano, aos 98 anos de idade. Vi muita coisa sobre a tropicália e sobre a MPB. Vi um filme exuberante sobre Frida Khalo, Trotski, Rivera e os surrealistas.

Eu precisava, contudo, ler durante as tardes. Procurava um autor que tivesse um estilo tão fluente que me agarrasse apesar da minha baixa atenção. Então eu pensei num escritor que releio todo ano por puro prazer. Foi pegar e não largar mais: Graham Greene. Tenho cinco livros de Greene: “O poder e a glória”, “Monsenhor Quixote”, “O homem de muitos nomes”, “O nosso homem em Havana” e “O americano tranquilo”. Sempre que me sinto entediado, releio um deles. Posso dizer assim: para mim Graham Greene é o grande narrador. Fico maravilhado com a fluência, a poesia, a força da história contada e a elegância do texto.

Peguei “O americano tranquilo”. Deve ter sido minha décima releitura desse livro publicado originalmente em 1955. É a história de um estranho amor entre um correspondente inglês e uma jovem nativa durante a guerra da Indochina. A tranquilidade dessa relação é abalada pela chegada de um jovem americano ingênuo com a cabeça cheia de ideias irrealistas lidas nas obras de um guru chamado York Harding. A crítica ao intelectualismo abstrato e arrogante não pode ser mais severa. De um lado, o cinismo desengajado da experiência concreta. De outro, o perigoso comportamento de um discípulo infectado pelas ideias fora de lugar de um “pensador” distante dos fatos e com soluções para tudo.

Não contarei toda a história. Greene fez sucesso em vida. Foi jornalista, crítico de cinema e viajante. Cada livro seu, de certo modo, resulta de uma viagem. “O poder e a glória”, por exemplo, surgiu da sua viagem ao México, em 1938, época de conflitos e de intolerância religiosa na região. O trabalho para a revista Life na Indochina, em 1952, forneceria material e inspiração para “O americano tranquilo”. Narrar como Graham Greene é atingir o topo da arte literária. Tudo parece fácil, não há teorizações excessivas, a linguagem busca expressar coisas compreensíveis por qualquer um, cada parágrafo é paradoxalmente mais denso e suave do que o outro. A história parece contar-se sozinha ou acontecer diante dos nossos olhos na hora.

Para mim, foi o teste definitivo. No meu mais baixo grau de atenção, quando tudo se embaralhava, Graham Greene me sequestrou como sempre. O tempo, que não passava, evaporou-se. Relaxei. Senti prazer. Esqueci que estava doente. Eis o poder e a glória do grande narrador. Agora, releio contos do grande Rubem Fonseca, que acaba de partir.


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