Diário da quarentena (5): rotina

Diário da quarentena (5): rotina

Em tempos de guerra ao inimigo invisível

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 O presidente Jair Bolsonaro falou em rede nacional.

A Orquestra Nacional das Panelas acompanhou todo o seu discurso.

Ele fez bravata: disse que se contraísse o vírus, seria, por seu "histórico de atleta", "uma gripezinha, um resfriadinho".

Capitão, por que não te calas?

*

 

Os sapatos ficam na porta. As roupas vão direto para a máquina de lavar quando chegamos da rua. Não há futebol na televisão. A novela vista para não pensar por uma hora a cada noite será interrompida. Frascos de álcool gel estão por toda parte. Lavamos as mãos cada vez que tocamos em objetos ou superfícies externas. Abandonei o transporte público quando ainda tenho de me deslocar. Sentimos medo de sair de casa. A peste tem essa especificidade: transforma todos em ameaças e condena cada um à solidão. Tentamos manter a calma. A tensão sobe.

      Primeiro era um caso distante, um homem infectado pela mutação de um vírus na China. Depois, era uma cidade isolada. Em seguida, uma epidemia. Agora, uma pandemia. No Rio de Janeiro, a primeira vítima foi uma empregada doméstica que pegou o vírus da patroa. Uma badalada e linda estação de esqui austríaca está sendo acusada de ter espalhado o coronavírus na Europa. Islandeses deram o alerta. Não foram ouvidos.

Muito tempo se perdeu minimizando o perigo até que os nomes desconhecidos foram substituídos pelos de celebridades e autoridades infectadas. O presidente brasileiro brincou com a vida alheia mesmo depois que o vírus tinha entrado no Planalto. Deu-se um salto. Aparecem nomes de conhecidos entre os doentes. O medo de cada um de nós agora é o de ser atingido ou de ver familiares e amigos infectados. As cidades do interior não estão a salvo. Um primeiro caso foi confirmado em Santana do Livramento, minha terra natal. Um amigo francês conseguiu embarcar para casa pouco antes do cancelamento dos voos internacionais. Fico imaginando a sua sensação de alívio ao encontrar mulher e filho.

Dou aula por aplicativos. Gravo vídeos. Escrevo. Leio. Trabalho. Nem assim reduzo realmente a angústia. Conversamos sobre como dividir o apartamento caso um de nós fique doente. Como enfrentar o medo sozinho num quarto? A única maneira de saber se alguém tem o vírus é testar, mas não há testes para todos. Aliás, há muito poucos testes disponíveis. Pergunto incansavelmente a especialistas: não tem como criar um esforço nacional para produção massiva de testes nem que o governo tenha de interferir em laboratórios? Ouço que é impossível. Procuro notícias sobre testagem de remédios e produção de uma vacina. Só a ciência poderá abrir caminho para o futuro. Precisa ser rápida.

Fomos a uma farmácia às seis horas da manhã tentar a proteção contra o influenza. Ruas mais vazias do que de costume mesmo para o horário. Não havia mais vacinas. Na volta, um homem começou a tossir insistentemente atrás de nós. Apertamos o passo. Ele nos seguiu. Era uma brincadeira de péssimo gosto. Sintoma da marca deste mal: ninguém mais é confiável. O medo instala-se e dissemina-se até irracionalmente. Confesso que me emocionei depois de ler dezenas de textos sobre a expansão da pandemia. Sei que o momento exige moderação e manifestações de esperança. Mas chamei Cláudia para perto de mim e falei:

– Se eu morrer de coronavírus, não esquece que te amei demais.


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