Diário da quarentena (8): desgoverno

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Brasil a deriva

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Um desembargador vai à praia em Santos para exibir o seu bolsonarismo.

É o mesmo que relatou o recurso que anulou as condenações do massacre do Carandiru. Quer ser candidato a prefeito.

O ministro Paulo Guedes passeia no calçadão de Ipanema, no Rio.

Carreatas pedem o fim do isolamento social.

Vereadores de Viamão, no RS, concederam-se aumento salarial em 17 de março de 2020, quando o país se preparava para parar.

Duas cidadãs reagiram com ação popular. O Ministério Público já se manifestou favorável à suspensão do aumento.

Fica a pergunta: o que dizer dessas caras?

Em meio à pior crise que já vivemos, o Brasil é um barco a deriva.

O capitão perdeu o comando e ninguém o sustenta.

Panelas batem todas as noites soando o naufrágio do seu governo.

A justiça já o proibiu de adotar decisões contra o isolamento.

Bolsonaro é o mais isolado dos brasileiros.

Mas ainda não percebeu "isso daí".

*

       Oito dias inteiros sem colocar o pé na rua. Escrevi, li, gravei vídeos, dei aulas online, apresentei programa de rádio e me angustiei. Minha garganta começou a falhar. Sofro de uma alergia que faz minha voz saltar. Fui socorrido por um médico generoso recomendado por outro médico generoso. Aí comecei a sentir uma dor muscular. Fiquei inquieto. Claudia me lembrou que tenho ficado quase todo o tempo sentado e com uma má postura. Fiquei mais tranquilo. Tenho medo dessa “gripezinha”.

      Meus quase 50 anos jogando bola não me garantiram a condição de atleta. Além disso, vi que atletas de MMA, como o italiano Christian Binda, de 42 anos, conheceram um dos círculos do inferno de Dante depois de infectados e internados. O pior de tantos dias confinado, sem um joguinho de futebol ao vivo na televisão, é ter de ouvir discursos presidenciais. Eu poderia desligar. Mas sou jornalista. Preciso estar bem-informado. Como não sou surdo, ouço. Fico estarrecido. A ciência é pisoteada. Como poderia ser diferente em tempos de contestação da esfericidade da Terra? Li que o coronavírus é apenas uma armação.

      Uma armação que tortura e mata. Um empresário relativizou: só mata velhinhos. Outro, de quem eu nunca ouvira falar, pois não sou fã de hambúrguer, colocou empregos acima de vidas. Esses caras até podem alegar que não têm cargos públicos e que podem falar besteira à vontade. Não creio. O problema maior, em todo caso, é o presidente da República. Cabe a ele conduzir a nação em meio à tormenta. Só que o homem parece não sair da mesa de bar onde provoca, distorce, faz bravata, chama para briga, chuta o balde e conta vantagens. Capitão de aço, garante não ter medo desse vírus que só lhe provocaria um “resfriadinho”. O seu general de estimação, Heleno, infectado, voltou da quarentena para o expediente no Planalto depois de sete dias.

      O mundo marcha numa direção. O capitão vai noutra. Jairzão do passo errado, pedestre de cada vez mais triste figura, fustigado por panelaços noturnos e por pauladas diurnas de governadores, sem moinhos de vento para combater nem poesia para narrar. Ciro Gomes ofereceu sugestões realizáveis como “criar IMEDIATAMENTE um programa de renda mínima de acesso gradual, mas veloz a todos os trabalhadores informais, autônomos e desempregados. Estamos estudando valores entre R$500,00 e R$800,00 mensais por pessoa, adstrito a dois beneficiários por família”. O plano de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes era mais radical: cortar salários dos trabalhadores por quatro meses. O presidente recuou da MP do mal. Guedes defendeu-se dizendo que fora erro de redação.

      Ficar em casa sem sair não é fácil quando se tem a obrigação de permanecer recluso. Passo muito tempo trabalhando em casa. Mesmo assim, mudou bastante a minha rotina. Tenho mais medo, fico mais ansioso, temo cada dorzinha que me atinge, enlouqueço a cada pronunciamento em rede nacional, registro os panelaços de cada noite para sentir a afinação. Tudo o que queria agora era um condutor ponderado, sereno e determinado a utilizar os conhecimentos da ciência para nos levar a bom porto.


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