Diário dos despejos

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Sessenta anos do livro de Carolina Maria de Jesus

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      Um livro incontornável da literatura brasileira chega aos 60 anos da sua publicação: “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. As mulheres têm um papel nem sempre suficientemente destacado na história do Brasil. Dona Leopoldina foi quem realmente proclamou a independência nacional. A abolição da escravatura resultou da luta dos negros e dos seus aliados. A princesa Isabel cumpriu papel relevante assinando a Lei Áurea. Carolina de Jesus colocou na literatura a vida dos favelados como ninguém havia feito antes dela. Três mulheres, três imaginários. Carolina escreveu sobre a independência e a liberdade que a história oficial não concedeu aos seus com atos de formalidade.

      Catadora de lixo, mãe de três filhos, Carolina de Jesus, virou manchete depois de conhecer o jornalista Audálio Dantas, que fazia reportagem onde ela morava. Em 9 de maio de 1958, a Folha da Noite estampou: "O drama da favela escrito por uma favelada". A editora Francisco Alves percebeu a oportunidade e pagou adiantamento para ter a obra que Carolina escrevia em cadernos encontrados em lixões. Sucesso total, dez mil exemplares vendidos em uma semana, tradução em 46 países, 14 línguas, dinheiro para comprar casa fora da favela, entrevistas, resenhas na mídia internacional, estudos acadêmicos sobre a vida real descrita por quem não a via como espectadora ou jornalista de passagem. Como a vida não costuma ser conto de fadas, o sucesso passou, Carolina voltou a catar lixo e morreu, aos 64 anos, pobre.

Quarto de despejo era o nome que ela dava para as favelas. Recentemente André Bernardo resgatou a história de Carolina de Jesus em matéria publicada no UOL. Começa com ela gritando para vizinhos que agrediam um menino a frase que chamou a atenção de Audálio Dantas: "Deixa estar que eu 'boto' vocês no meu livro”. Em 2017, Tom Farias lançou “Carolina: uma biografia”. O que essa mulher contava no livro?

Coisas assim: “De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. Êle deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera. A Dona Alice veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! O dinheiro! Que faz morte, que faz odio criar raiz”.

      Era realidade sem artifícios. Clarice Lispector ficaria deslumbrada com o texto. Ferreira Gullar elogiaria. O mundinho literário tomaria um choque de realismo. Depois, o embalo passou, a vida como ele era seguiu e Carolina de Jesus voltou para o anonimato. A cada dez anos o seu nome volta às manchetes como uma boa efeméride. “Quarto de despejo”, porém, não deixou o nome da escritora morrer.


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