Dilma de volta em casa

Dilma de volta em casa

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É feriado nacional: 7 de setembro.

Venta muito em Porto Alegre. Faz um frio de "renguear cusco". As ruas estão vazias. A cidade exibe um melancólico ar fantasma. Escuto Chico Buarque cantar "Maninha". Penso na agora ex-presidente Dilma Rousseff.

Tento imaginar o seu primeiro dia em Porto Alegre depois do impeachment.

Não é manhã para pedalar. Não é dia para contemplar o rio. Terá a ex-presidente vontade de dormir até mais tarde tentando abstrair o tempo? Sentirá uma espécie de ressaca? Olhará pela janela as ruas da tristeza e a tristeza das ruas? Buscará no aconchego da família, pegando os netos no colo, o conforto que não teve nos últimos meses?

Nunca a encontrei pessoalmente. Há pouco tempo, na Rádio Guaíba, em nosso programa Esfera Pública, Taline e eu fizemos uma longa entrevista com Dilma. Senti, pela voz, uma mulher sincera andando no seu labirinto.

Dilma fez um excelente primeiro mandato. Cometeu erros na política econômica no segundo. Foi derrubada sem que pese sobre ela uma só acusação formal de corrupção. Os crimes de responsabilidade que serviram de pretexto para sua destituição são mais do que duvidosos. O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul passou a borracha em atos semelhantes – emissão de créditos suplementares sem cobertura legal – do governador José Ivo Sartori em 2015. A imprensa internacional tem sido mais justa com Dilma do que a nacional. Janaína Paschoal, a advogada que se tornou célebre por propor o impeachment de Dilma, não tendo a mesma gana em relação a Michel Temer, afirma que jornais como Le Monde, The Guardian, New York Times e El País foram manipulados pelo PT.

Faz frio. Venta muito. Penso na tristeza da ex-presidente Dilma. Sei que não é mulher de melodrama. Mesmo assim, não me impeço de imaginá-la espiando uma nesga do céu chapado de cinza pela janela do seu apartamento.

O novo governo prepara sua estratégia, a aplicação dos seus anunciados remédios amargos para os "males" da plebe: mandar o projeto da reforma da Previdência antes ou depois das eleições? A senadora Kátia Abreu, que, apesar de rainha do agronegócio, não traiu Dilma, alfineta: estuda-se primeiro enganar o eleitor para depois...

O programa Bolsa-Família sofrerá um corte de 30% no seu orçamento.

Dilma não teve direito a pousar no aeroporto Salgado Filho. Foi mandada para Canoas. Mais uma manobra para impedir que milhares de pessoas a recebessem e gritassem o bordão mais famoso do país atualmente: "fora, Temer".

Por toda parte, as polícias governistas tratam de reprimir violentamente os atos contra Michel Temer.

A criatividade popular já criou dois nomes para o novo presidente: MiSHELL Temer e Fora Temer.

Imagino que Dilma, de volta ao lar, no seu espartano apartamento classe média, pense no seu passado, no seu presente, no seu futuro. O que pensa quem se elegeu duas vezes presidente da República e teve sua trajetória interrompida por uma manobra parlamentarista cínica e pragmática num regime presidencialista?

Pensará Dilma na ilegitimidade de Temer para implementar reformas radicais? Pensará nos que a traíram sem a menor cerimônia? Pensará nos seus ex-ministros que votaram contra ela no julgamento depois de ter compartilhado governo, decisões, apostas, cargos, honrarias? Pensará no próprio Temer como um cerimonioso oportunista?

Pensará que carregou Temer nas costas para o governo? O PMDB votou em Aécio ou em Marina.

Pensará nos ardilosos que pretendem separá-la de Temer no julgamento das contas da campanha no TSE?

Pensará nos ministros do STF que indicou, como Teori Zavascki, o homem que segurou o afastamento de Eduardo Cunha até a votação da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara dos Deputados?

Verá em Eduardo Cunha e em Teori os seus maiores algozes?

Ou reservará um lugar especial para o ministro Gilmar Mendes?

Acordará de madrugada sentindo-se profundamente injustiçada?

Penso em Dilma Rousseff, de volta ao convívio dos comuns, penso na sua ascensão e queda.

Penso no ódio que alguns sentem por ela. Penso nos seus erros e acertos.

Penso no que ela pensa.

Será que pensa, como na canção, na sua infância com roupa no varal, jaqueira e feriado nacional?

Será que pensa na juventude, na prisão e na tortura?

Ou somente pensa neste presente com cara de eternidade?

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