Do lado esquerdo do peito

Do lado esquerdo do peito

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No seu último show em Porto Alegre, no auditório Araújo Viana, Milton Nascimento explicou a origem da música “Canção da América”, aquela que diz que “amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito”. Inevitavelmente comecei a pensar nos meus grandes amigos. Na infância, tive dois, Eron e Carlos Henrique, meus primos. Ambos morreram cedo. Eron faleceu num acidente em Rio Grande. Carlos Henrique foi levado prematuramente pela doença. Na adolescência, no colégio das freiras, em Santana do Livramento, fiz um amigo do peito de nome tão estranho quanto o meu: Praxedes. É dentista em Novo Hamburgo. A amizade é o sal da vida. Aquilo que ilumina.

As minhas grandes amizades do presente foram feitas há 30 anos. Amigos da faculdades de história e de jornalismo na PUCRS. No jornalismo, amarrei-me a três amigos fantásticos: Ricardo Carle, David Coimbra e Telmo Flor. Ricardo, infelizmente, também morreu cedo, depois de anos inválido por causa de um atropelamento na Venâncio Aires, em Porto Alegre. O motorista fugiu sem prestar socorro. Ricardo era um boêmio estupendo, um cara inteligente, culto, esquisito e dono de um sarcasmo devastador. David Coimbra, que dispensa apresentações, continua o mesmo: divertido, confiante e competente. O nosso contato é esporádico. A forte amizade, permanente. Telmo, diretor de redação do Correio do Povo, impressionava-me na faculdade pela maturidade. Éramos todos umas crianças espevitadas. Telmo parecia acima de todos nós, esbanjando generosidade e firmeza. Um líder.

Na faculdade de história, encontrei dois irmãos: Álvaro Larangeira e Luís Gomes. Nunca mais nos separamos. Na UFRGS, estudando antropologia, encontrei o Celso Dias. Na Sorbonne, em Paris, fiz mais algumas amizades profundas. Uma delas com um cara que sabe tudo da música brasileira, o Olivier. O leitor pode estar dizendo: “E eu com isso!” Ou perguntando: “E daí?” Daí que estamos conversando, batendo um papo, refletindo sobre a vida, a passagem do tempo, as ilusões perdidas, aquilo que, felizmente, nunca se perde, o que realmente importa na existência. Noto que vai ficando mais difícil abrir o coração para novas amizades profundas. Por que será?

Há pessoas que são amigas e determinantes na vida profissional sem que se possa falar nessa intimidade dos amigos que falam bobagens em mesa de bar e podem até brigar. Na minha vida profissional, três homens foram decisivos: o sociólogo francês Michel Maffesoli, o irmão marista Mainar Longhi e o monsenhor Urbano Zilles. Há, porém, uma única pessoa com um pé em cada uma dessas partes descritas até agora: a amizade de sala de aula, de mesa de bar, e a influência profissional. É o Telmo. São esses os caras que eu guardo debaixo de sete chaves, do lado esquerdo do peito e a quem, mesmo estando tão perto, eu digo: “Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”.

A canção de Milton e Brant me faz ficar emotivo e pensar, com lágrimas nos olhos, nesses companheiros de guerra que ficaram pelo caminho e nesses com os quais continuo a enfrentar os combates do cotidiano. Quero dizer aos meus amigos que eu os amo. Algum problema?

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