Do Porto de Mariel a Dilma, Maju e o volume morto

Do Porto de Mariel a Dilma, Maju e o volume morto

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Em tempos de golpismo escancarado da mídia, de jornalistas oportunistas e da oposição vergonhosamente adepta do quanto pior, melhor, aqui vão três olhares independentes sobre a crise brasileira atual.

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Revelação em Mariel

Eu tive uma revelação em Cuba. Foi no que viria a ser o Porto de Mariel. Estava cobrindo a viagem do governador Tarso Genro com uma comitiva de empresários e de políticos gaúchos. Faziam parte do grupo o deputado Alexandre Postal (PMDB), presidente de Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul à época, e Heitor Müller, presidente da FIERGS. Todos pareciam muitos satisfeitos. Havia também um representante da empreiteira Odebrecht, um certo Alexandrino Alencar, que agora dorme na prisão por conta da Operação Lava-Jato. Nada havia de ilegal naquela viagem. Os empresários estavam felizes com a oportunidade de ganhar dinheiro mesmo na ilha comunista dos Castro.

A revelação que tive foi simples: o BNDES dava dinheiro aos empresários brasileiros, no caso à Odebrecht, para construir um porto em Cuba. Unia-se o útil ao agradável. Presenteava-se o socialismo amigo com um porto baseado em empréstimos baratos ou gratuitos. E, de quebra, transferia-se dinheiro para empreiteiras financiadoras de campanhas políticas, que ficavam na obrigação de devolver uma parte dos recursos na hora das eleições. Os empresários ganhavam o que mais gostam: dinheiro. A política recebia o que sempre procura: grana para campanha. Cuba levava um porto. O BNDES pagava a conta. Ninguém tinha nada a objetar. Tudo dentro da lei das doações de campanha. Meu pensamento foi básico: tudo nos conformes na medida em que a legislação brasileira permite estranhamente que empresas prestadoras de serviços ao Estado façam doações de campanha. Tarso Genro nada tinha a ver com o pato. Nem com o porto. O negócio era federal.

Lembro-me de que pensei com os pés na areia: isso não vai dar certo. Esse pensamento foi prontamente substituído por outro: então é assim que funciona. Como tudo era legal, eu nada tinha para contar. Mas falei disso em artigos no meu blog. Não pensei em desonestidade escancarada. Pensei num sistema, digamos, de reciprocidade: eu tenho um porto para construir; tu assumes essa construção e fatura alto com isso; em compensação, tu financias a campanha do partido do governo. Comentei com alguém, que me disse: a Odebrecht bota dinheiro nas campanhas de todos os partidos. Tudo esclarecido. Alexandrino Alencar estava no auge. Parecia andar envolto por uma aura. Levitava. Ria.

Todo ex-presidente faz palestras para ganhar dinheiro. Bill Clinton fatura alto. Ou faturava. Mas um ex-presidente fazer palestras para empreiteiras prestadoras de serviços ao Estado e financiadoras das campanhas do seu partido gera, no mínimo, uma estranheza. Não será troca-troca? Não será toma-lá-dá-cá? A defesa do PT é simples: se Lula fez, FHC também fez. Voltei de Cuba com uma convicção: quando uma mão lava a outra, as duas podem ficar sujas. Insisto em dois pontos: nada vi ou ouvi de ilegal. A comitiva do governador Tarso Genro visitava Cuba para cuidar de interesses do Rio Grande do Sul. O Porto de Mariel foi apenas um ponto da viagem. O empresariado estava exultante com a possibilidade de novos negócios. As ideologias, em plena ilha castrista, estavam suspensas. Que luz! A Copa do Mundo, para mim, foi uma operação do mesmo tipo. Marielesca.

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Dilma e Maju

O Brasil está no fundo do poço. Temos uma predileção por clichês que nos afundam. É o complexo do poço de balde. Na campanha gaúcha, depois do enforcamento, era o método mais barato e comum de suicídio. Jogar-se no buraco. O ex-presidente Lula disse que ele e Dilma Rousseff entraram no “volume morto”. O pré-sal do volume morto foi atingido com as recentes manifestações de alguns espíritos de porco, com o devido pedido de desculpas aos suínos, que fedem sem fazer mal a ninguém, contra a presidente Dilma, no caso dos adesivos de conotação sexual machista, e contra a apresentadora negra do tempo, no Jornal Nacional, da Rede Globo, conhecida como Maju.

Toda a carga incontida de machismo e racismo de alguns brasileiros veio à tona. A linda, espontânea, carismática e competente Maju foi acusada de só estar no posto graças à lei de cotas. O racismo é um dos piores problemas do Brasil atual. Sempre foi. As cotas não valorizam incompetentes, mas buscam alterar a falta de equivalência nas condições de preparação para as disputas sociais. Os liberais, que não costumam atentar para a realidade, adoram dizer que o importante é ter igualdade no ponto de partida. É exatamente isso que o Brasil nunca teve. Um menino pobre e um menino rico que fazem a mesma prova de vestibular dificilmente têm as mesmas condições de preparação. É como se a tartaruga, por força, digamos, da “natureza” da sociedade, deixasse a lebre sair na frente. É isso.

O modelo brasileiro transforma negros pobres em tartarugas que devem enfrentar e vencer lebres que sempre largam com metros de vantagem.

Os adesivos misóginos colados em carros, que mostram a presidente Dilma de pernas abertas recebendo uma bomba de gasolina, exibem a grossura ideológica dos coxinhas mais extremistas. São os lacerdinhas do Estado Islâmico Noeliberal Brasileiro (EINB). Há quem não goste desse tipo de caricatura ou dessas etiquetas para fazer rir e, quem sabe, arrancar algumas máscaras. Estranhamente são pessoas que gostam de rótulos como petralhas e outros equivalentes. Lorde Tackeray, sábio universal e intemporal da sua aldeia, sempre dizia:

–– Isento é o insulto que eu cometo. O resto é desaforo.

Vale para os dois lados. A banca paga, recebe e trapaceia quando pode. Cada qual com suas razões e com o seu saco de laranjas para consumo interno. Que história é essa de laranjas? Com o sol de inverno, dá vontade de lagartear. É só um efeito digressivo. Os insultos à presidente Dilma e à apresentadora Maju são obras do mais baixo recalque e do mais ideologismo barato. O Brasil não muda. Em 1950, a UDN queria novas eleições. Em 2015, o PSDB quer novas eleições. Por que isso nunca acontece na França ou nos Estados Unidos? O pessoal por lá aprendeu a regra do jogo: perdeu, espera quatro anos e tenta de novo. Funciona. Com os ataques machistas, racistas e golpistas, o Brasil está beijando a lona. Ainda bem que não nos faltam clichês para ilustrar a situação. Comemos grama.

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Volume morto

Lula falou: ele e Dilma estão no volume morto. O Brasil é um gigantesco volume morto. A Cantareira, porém, renasce com as águas de março para morrer novamente na metade do ano. O presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, leva o Brasil ao volume morto a cada semana. O Supremo Tribunal Federal lava as mãos num restinho de água. Cunha enterrou o país no volume morto ao fazer votar pela segunda vez a emenda constitucional do financiamento privado de campanha. A sua proposta fora derrotada na primeira rodada. Cunha voltou a levar o Brasil ao volume morto na votação da PEC da redução da maioridade penal. Derrotado, trapaceou novamente. A regra, como dizia o obscuro, é clara: matéria rejeitada só pode ser votada novamente na sessão legislativa seguinte. Eduardo Cunha é o Brasil no volume morto: atrasado, conservador, trapaceiro, autoritário, arrogante e feliz.

Investigado pela operação Lavo Jato, deveria estar afastado até a conclusão dos trabalhos. No volume morto da ética, o país aceita ser comandado e manipulado por um suspeito de corrupção. Vale o mesmo para a presidente Dilma? Se houver acusação formal contra ela ou investigação, terá de se afastar. Por enquanto, o volume morto da democracia trama um golpe, como em 1950, 1954, 1955, 1961 e 1964. A UDN está de volta. Mudou de nome para PSDB. Como Eduardo Cunha, que perde e vota de novo, os tucanos perderam e querem novas eleições. O boato do momento é que Lula estaria tentando convencer Dilma a renunciar. O PMDB examina a situação com carinho. Michel Temer, ao se tornar articulador político do governo junto ao Congresso Nacional, deu sobrevida ao volume morto petista. De repente, começou a querer sair. Se abandonar o barco, ele afunda. Não seria esse o seu desejo?

Se Dilma cai, Temer assume. Vice no Brasil é um perigo. Sempre pode abocanhar o trono. Por que Temer manteria Dilma viva? O volume morto crescendo ele seria presidente. Tem um probleminha. O PSDB, como a antiga UDN, alega que, não tendo o mandato chegado ao meio, a renúncia ou o impeachment determinariam novas eleições. Derrubar Dilma para dar uma nova chance a Aécio, o Eduardo Cunha tucano, não é um bom negócio para o vice-presidente da República. O volume morto cresce, o Brasil se remexe no túmulo. O PT bancou o malandro. Achou que podia enganar a raposa. Caiu no conto da câmera escondida. Entregou tudo para a amante confiando que ela não o trairia. Está morrendo pela boca com o volume batendo no queixo. Não, tudo errado, o volume morto não cresce. Diminuiu.

A água já está pela canela.

A democracia brasileira voltou ao volume morto dos anos 1950 e 1960. Por que não se colocar na Constituição de rever os mandatos a cada ano dado que não tem paciência para esperar quatro anos? Getúlio se matou no poder. Café Filho foi “afastado” por motivo de saúde. Carlos Luz levou um pé no traseiro. Nereu Ramos não teve tempo de cair. JK quase não assumiu. Jânio renunciou. Jango foi golpeado. Os militares tinham imunidade. Tancredo morreu na véspera. Sarney sobreviveu. Collor foi derrubado. FHC e Lula escaparam. Dilma parece um fantasma.

O Brasil é um cemitério de presidentes. Volume morto.

 

 

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