Duas noites com Antônio e Belchior no Bom Fim

Duas noites com Antônio e Belchior no Bom Fim

publicidade



Por Gabriel Jacobsen e Jimmy Azevedo

Entramos na recepção de um hotel de poucas estrelas, no Centro de Porto Alegre, e perguntamos por Edna e seu marido. Três minutos depois, uma mulher exausta, simples e bem articulada começa a nos narrar a epopeia corajosa que vive há três com o companheiro. São noites mal dormidas, viagens repentinas, impossibilidade de voltar para casa e de manter contato com os parentes. Conforme evolui o relato da mulher, aumentam o mistério e a tensão, que parecem nunca se concluir. Cada hóspede que passa perto de nós é um agente infiltrado em potencial, buscando informações para uma emissora de tv ou uma foto flagrante do casal tomando café:

– “Mandaram jornalistas se hospedar no mesmo andar da gente”, supõe, enquanto seus olhos procuram os inimigos que, para nós dois, são invisíveis.

Ao menos a câmera de vigilância do hotel não nos filma no canto onde conversamos, tranquiliza-nos. “Esse cara do hotel não tem jeito de que sabe fazer leitura labial”, diz ela. Ouvimos muito e perguntamos pouco nestes 10 ou 15 minutos que antecedem a chegada de dois carros enviados pela Defensoria Pública gaúcha.

Para nossa própria segurança, alguns detalhes do que se passou com o casal e do que está sendo articulado por ambos não nos serão revelados. Aceitamos. Mas existe um dossiê com incontáveis cópias salvas em locais estratégicos, nos revela Edna, antes de desaparecer hotel adentro para buscar as malas e seu marido. “Estamos exaustos, não aguentamos mais fugir”.

Com todos prontos para a fuga rápida, aparece Belchior, de bigode meio branco, meio preto. Entramos todos no mesmo carro, enquanto o outro veículo parte antes, despistando os possíveis paparazzi. Atento e carinhoso, pergunta nossos nomes, nossa origem, e daí para diante nos trata como se nos conhecesse de longa data. No breve caminho, Edna comemora a ausência de qualquer veículo nos seguindo.

Belchior nos conta que morou em Porto Alegre e lembra de uma entrevista “maravilhosa” concedida a Caio Fernando Abreu para o Correio do Povo. Encarnado de Porto Alegre, cita figuras como João Gilberto, que morou na Capital no inicio da carreira, e o mais famoso poeta gaúcho. “Mario Quintana morou no hotel do Falcão”, lembra.

Da mesma forma que fizemos ao sair do hotel, primeiro vão as malas, depois Edna e nós e, por fim, Belchior é resgatado do carro. Defensoria Pública adentro, Belchior flutua sorridente, cumprimentando afável todos os funcionários. Ingressamos, quase com refugiados, com toda a bagagem do casal: uma mala pequena, uma pasta entupida de documentos e duas sacolas de papel com poucas roupas.

Durante seis horas, nos distraímos na sala de espera do sexto andar com cafés, copos d’água, um quarto de pacote de polvilho, estagiárias belas e novas demais nos sorrindo como se fossemos importantes e um poema de Manuel Bandeira chamado Isadora. De tanto em tanto, Edna sai da reunião para conferir se ainda estamos ali. Estamos.

Terminada a reunião, pouco ou nada nos relatam, ainda que esta seja o segundo encontro com aqueles advogados em dois dias. Também fica implícito que uma nova reunião será necessária e que pretendem continuar em Porto Alegre. Reticentes de se esconder, ou ao menos tentar se esconder, em outro hotel da Capital, nos pedem sugestões de hospedagens mais discretas. Encontramos uma amiga disposta a oferecer alguns dias de casa, comida e roupa lavada.

 

Quando Belchior se torna Antônio

 

No mesmo táxi fretado, cuja aparência do motorista se assemelha, para Belchior, a de um personagem d’O Poderoso Chefão, partimos do Centro ao Bom Fim. Nada lhe é estranho no caminho, pois morou por alguns meses no bairro em meados da década de 70, antes do aclamado disco Alucinação (1976). "A gravadora mandou o Belchior para cá como forma de preparar a estratégia de marketing, corte de cabelo, roupa...", explica Edna.

Ao contrário da companheira, Belchior conversa conosco sobre música, músicos, poesia e conta histórias da MPB, sempre sereno. “Radamés Gnatalli (músico porto-alegrense) fez o arranjo musical para uma gravação da musica Baião, de Luiz Gonzaga, gravada por mim para uma novela, eu acho”, diz Belchior, enquanto assiste ao trânsito em transe da lenta avenida Venâncio Aires no fim da tarde. Transe favorecido pelo ar-condicionado e que Edna irrompe propondo uma combinação: que por questões de segurança, ainda desconhecidas para nós, comecemos a tratar Belchior pelo primeiro nome: Antônio.

- Só se o Antônio concordar... - um de nós sugere, transformando a tensão em risadas.

Chegamos a uma dessas ruas do Bom Fim, onde o “Ritual de Edna” é repetido, mantendo o cantor, poeta, gênio da MPB, a salvo do mundo até que sua companheira termine a inspeção minuciosa da rua (vazia). No apartamento da prestativa estudante, o melhor quarto é oferecido aos hóspedes, junto com uma cópia da chave. Antônio reviverá o Bom Fim por três dias e três noites.

O jornalista Juremir Machado, colega de Rádio Guaíba, que intermediou nosso contato com Belchior, chega pouco depois das 20h. Cumprimentos, elogios e breves referências até chegarmos às perguntas objetivas. Por que estão aqui? De onde vieram? Pra onde vão? As respostas são vagas no que se refere a tempo e espaço. No entanto, ressaltam o descontentamento com um veículo de comunicação nacional e a possibilidade de Antônio voltar aos palcos ainda no primeiro semestre de 2013. O cancioneiro cearense, natural de Sobral, já teria composições inéditas suficientes para três álbuns, de acordo com Edna.

- Mais de 30 músicas?, perguntamos ao casal

- Não tanto, umas vinte e poucas, revela o cantor.

Papo se estende e Edna começa a nos mostrar, na TV da sala, vídeos no YouTube. Assistimos, em sequência, a quatro clipes de Belchior. Sua música, naquelas circunstâncias, chapa a todos e o ídolo de várias gerações larga o corpo no sofá como se voltasse se quisesse transpassar, carpete e concreto para alcançar, na contramão dos dias, um passado de inevitável superexposição na mídia, numa expressão de doce revival. Depois da música povoar o apartamento, alguém sugere: prefiro te ouvir ao vivo, pega o violão! Um de nós lhe oferece um dos violões estrategicamente repousados no canto da sala, mas Antônio se nega, como se o instrumento fosse uma desconhecida com quem não se quer puxar papo numa ponte aérea.

Antes disso, até houve uma tentativa de quebrar o silêncio artístico quando ele comentou que havia gravado a música Paixão, de Kleiton e Kledir, que prontamente teve dois acordes humildemente sussurrados no violão por um de nós. Somente ali Antônio desencarnou de Belchior e se permitiu cantar a segunda frase da música: “...e o teu jeito de fazer amor”. Porque Antônio, não Belchior, prefere somente conversar sobre a vida – não a sua: literatura, cinema, comportamento humano e reflexões densas ou improváveis. Nada foi perguntado sobre seu suposto desaparecimento e sobre dívidas mencionadas em reportagens sensacionalistas por veículos do centro do país. Nem pretendíamos. Não porque o silêncio quebraria uma confiança até então construída, mas porque nossa intenção era materializar Belchior enquanto pessoa e artista para milhões de fãs sedentos de boas notícias suas: um novo show, um disco...Aliás, Belchior, Antônio para nós, não quis nos conceder uma entrevista formal. “Quero algo grandioso, não fragmentado”, repetiu.

Este relato é como um diário de bordo, porém beirando um conto fantástico – nós meio imersos, meio abduzidos por um universo estranho, sem sincronia entre tempo e espaço. Não nos despedimos dele. Apenas retomou alguma rua do Bonfim, alguma rua do Brasil ou das bandas orientais, surgindo para alguns e desaparecendo para outros.



 

Antônio quer ser gente

 

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ex-estudante de Medicina da Universidade Federal do Ceará, considera que há muita confusão entre o que é um poeta romântico e um boêmio.

Drogas: “Nunca usei maconha, só fumei cachimbo e charuto”, fala enquanto tomamos o único vinho da noite.

Política: considera que a Lei da Ficha Limpa deveria ser chamada de Lei da Ficha Suja.

Política 2: Faz piada quando os dois repórteres comentam sobre as eleições complementares de Novo Hamburgo: “O único Zimmermann que eu conheço é o Bob Dylan”.

Passado: “Em um show, lá em Sobral (CE), Waldick Soriano não deixou os estudantes pagarem meia entrada. Ele dizia, se pagar só meia, vai ver só o começo e o final do show, ou seja, a metade. Depois, já no hotel, quando os estudantes protestavam ainda pela meia entrada, ele tirou um revólver pra fora e atirou próximo aos estudantes”.

Educação: “Eu estudo todos os dias”.

Gosto: “Eu acho a música do Rio Grande do Sul melhor que a da Bahia”.

Foram em ocasiões como esta, que Belchior conseguiu interagir sem que houvesse qualquer interferência do mundo externo, quase a ponto de cantarolar ou empunhar o violão ou mesmo conceder uma entrevista completa para além da convivência com dois repórteres. Como nada acima se concretizou, no dia seguinte pegamos aqueles dois violões e, enquanto Belchior repousava com a companheira, tocamos canções. Lentamente, após meia dúzia de músicas, Belchior ressurge e observa o nosso amadorismo ao empunharmos músicas de compositores gaúchos e nordestinos. Não se comoveu, tampouco perdeu o sorriso.

Foto: Camila Genz

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895