Em busca dos lugares que não se perdem

Em busca dos lugares que não se perdem

publicidade

Tempo de caminhar

 

      Entre as poucas certezas que trago na vida está a de que o tempo muda com o tempo. Não chega a ser uma certeza esclarecedora nem genial. É apenas uma percepção redundante e risível que se enraíza com a passagem dos anos no imaginário dos que estão passando e olham para trás tentando capturar um perfume que se perde. Aprendi com o melancólico poeta Eliot, que havia aprendido em textos sagrados, que há um tempo para cada tempo. Julgo humildemente que há um tempo para caminhar. E que esse tempo precede aquele em que só poderemos lembrar das caminhadas. O tempo de caminhar já não mais é o de querer chegar.

O tempo de querer chegar é o da idade da razão. Tempo de objetivos, metas e ambições dependentes do ponto final. É quando se quer ir rápido, engolindo caminhos e colhendo resultados. O tempo de caminhar, no sentido que estou tentando esboçar aqui, é o da fruição existencial e estética, lenta, suave, reflexiva. Quanto mais devagar, melhor. Há que se sentir os cheiros da natureza, colher o pó da estrada, armazenar na alma o canto dos pássaros, guardar num canto da mente a imagem de um morro, o voo repentino de uma ave, uma luz irisando uma lâmina de água, uma risada de criança correndo na frente, o rastro imaginário ou deliciosamente assustador de uma cobra, uma lembrança repentinamente exumada do passado como se estivesse viva.

Na véspera do Natal, fomos, em família, três gerações, fazer uma caminhada de dez quilômetros em Palomas, nosso território realmente mítico e miticamente realizado por nossos sonhos e memórias. Entramos por um lado e saímos pelo outro concluindo o passeio ao pé do Cerro de Palomas. No trajeto, viajamos no tempo. A Belinha e o Artur corriam na frente sem saber que produziam certamente lembranças para daqui alguns anos. O que vimos, o que sentimos, o que conversamos? Quando éramos crianças, em Palomas, essa caminhada até onde hoje passa a BR-158 era considerada muito longa. No inverno, carros atolavam no barro vermelho do chamado Alto Grande. Vimos que o Alto Grande não é tão grande. Ficamos decepcionados? Não. A infância é uma máquina de enormidades.

Uma caminhada é uma sucessão de acontecimentos fortuitos ou nem tanto: a Karem caiu da moto; um homem num velho carrinho branco procurava desesperadamente o seu caseiro sumido; a temperatura estava amena, quase sem sol, mesmo assim tomei um queimada; chegava a soprar uma brisa e era uma delícia encher os pulmões com o ar da manhã que parecia avançar sem pressa para nos deixar saborear cada passo; uma cadela cuidava dos seus lindos cachorrinhos na entrada da vinícola Almadén, que para nós será sempre a estância do Seu Candoca; a Escola Rodolfo Costa, onde estudamos, estava em perfeitas condições numa época de crise, bem cuidada; não vimos uma só pessoa nas ruelas, salvo o homem procurando seu caseiro, que passou por nós várias vezes; um quero-quero alarmou-se numa canhada escondida dos nossos olhos.

Lá estávamos nós, na manhã perfumada das coxilhas, entre campos a perder vista e a vista tentando furar o bloqueio do tempo para enxergar o que tínhamos vivido e não queremos esquecer por ter sido belo e espontâneo como as lembranças espiralando-se na atmosfera: Iara, minha irmã mais velha, meu irmão Jorge, Neide, mulher dele, minha sobrinha Carol, estudante de medicina, os dois pequenos, Artur, nosso sobrinho-neto, Belinha, filha do Jorge e da Neide, assim como o Eduardo, estudante de Direito, além do César, outro sobrinho, estudante de filosofia, e do Gringo, que entrou e saiu da família, mas continua membro honorário, no carro de apoio, e do Luís, nosso cunhado, que ajudou a nos resgatar ao final da pequena aventura.

Entre as poucas filosofias que acredito na vida está a de que o universal se expressa por meio do singular, um singular denso de sentimentos. Não pretendo ter inventado essa concepção aprendida certamente nalguma aula esquecida. Se conto aquilo que conto é por imaginar que nesse conto, ou nesse contado, que pode ter algo de canto, uma música se acende como um vaga-lume na sensibilidade de cada leitor. Quem nunca? Fomos nos revezando nas conversas e no ponteio da caminhada. Tudo tão simples, tão natural, tão verdadeiramente eterno. Creio ter percebido uma reverência em nossos olhos. Caminhar para respirar, sentir, sonhar, lembrar. Jorge contou de uma série que falava em “construção de memória”. Construímos a memória ou somos construídos por ela? Quase ao final, chegamos ao velho cemiteriozinho de Palomas, onde estão enterrados o pai, nosso bravo Cabo Vito, e o cunhado Írio, castelhano gremista que furou a fila e nos deixou muito cedo. O tempo se curvou até encontrar a sua outra ponta. Terna emoção.

A Karem vai ficar 45 dias com o braço imobilizado. Será que o homem encontrou o seu caseiro extraviado? Eu encontrei um perfume de campo matinal que havia perdido há décadas. Um dia, quando as pernas se renderem ao tempo, pensarei em nossa caminhada como intemporal. Ouvirei ainda as risadas do Artur e da Belinha e direi para todos:

– Que tempos aqueles!

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895