Em torno de uma foto

Em torno de uma foto

Crônica de um passado capturado numa imagem

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 Sou sensível ao poder das fotos antigas. Eles me fascinam. Especialmente quando estou nelas. Minha irmã mais velha, Iara, resgatou um recorte de jornal de quatro décadas atrás, no qual, em foto, Vera, minha irmã do meio, e eu, seguramos um troféu. O título diz: Grupo de Teatro Teresiano. Sim, fazíamos teatro estudantil. A peça, escrita e protagonizada por mim, chamava-se “Os rebeldes”. A trilha musical era um hit de Leno e Lilian: “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim...” O professor José Newton Ribeiro Canabarro, sempre atuante no teatro de Santana do Livramento, foi mais preciso: lembrou-se de ter assistido a uma apresentação nossa em 1º de agosto de 1979, no Teatro Municipal de Rivera, no Uruguai. Há 40 anos.

      A trupe era composta na maioria por alunos do colégio Santa Teresa de Jesus: Praxedes, Ione, Vera Lia, Loiracy e alguns nomes que, confesso, esqueci. Praxedes é o nosso dentista em Novo Hamburgo. Loiracy mora em Santa Cruz e está sempre visível no Facebook. Vera, minha irmã, já foi duas vezes secretária de Educação em Livramento. Onde andam Ione e Vera Lia? A nossa apresentação mais retumbante aconteceu em Lajeado, como já contei aqui, durante um festival de teatro organizado pela Associação Gaúcha de Estudantes. Meu personagem, num improviso entusiasmado, atacou os presidentes do país, que, por sinal, eram generais ditadores desde 1964. Fui chamado a depor na Polícia Federal. Dei entrevistas para rádios e jornais, até para a Folha da Manhã ou Folha da Tarde, da Caldas Júnior.

      Ali, confirmei o meu desejo de ser jornalista, escritor, poeta, dramaturgo, de tudo um pouco. Meu projeto era sair direto de Livramento para fazer teatro no Rio de Janeiro. Fiz uma parada em Porto Alegre, que se alongou além do fixado. Ainda vou completar o percurso e o plano inicialmente previstos. Na foto, estou com meus cabelos compridos. Foi minha imagem durante muito tempo. Um francês poderia dizer que é uma estampa estilo Bernard-Henri Lévy, o intelectual midiático por excelência da França, tropical ou selvagem. Eu diria um BHL, como é chamado, bagual. Direi algo abusado: como me mantive coerente nestes 40 anos! Sempre brigando com o poder. No caminho, perdi amigos, empregos, lugares e espaços, mas persisti.

      Como diz a música de “Os Serranos”, “bagual que nunca se amansa por mais golpeado que seja”. Assim me vejo. Aprendi, contudo, a me defender nas trincheiras. Ou a protegê-las. O que eu me pergunto mesmo quando olho foto do passado é isto: o que eles guardam? Será que preservam nossos pensamentos e sonhos? Podem um dia nos revelar o que fomos? Conservam nossos ideais? Esperam que a ciência evolua para, enfim, decifrar nossos desejos? Em que penso eu nessa foto que me deixou meditativo? Eu tinha 17 anos e toda as certezas do mundo.

A ditadura ensaiava a sua abertura para uma democracia tutelada e eu, na minha ingenuidade, atacava-a sem saber exatamente do que estava falando. Amplio a foto para enxergar quem fui e quem ainda serei. Por que me vem essa saudade enorme do pampa? Não sei. Apenas sei que sinto todo dia vontade de voltar a um passado inalcançável. Falar assim é mentir um pouco. Nunca falávamos pampa. É uma palavra que aprendi na cidade grande. Assim como na cidade aprendi a falar chimarrão, churrasco e pizza. Na minha infância, a gente só dizia campanha, assado, mate, torta napolitana. Eu queria passar ao menos uma semana por ano na campanha. Mergulhar de novo naquelas paisagens, verduras, águas, aromas, ventanias, cerros, cavalgadas, sonhos. Acordar com o passaredo, encher os pulmões, andar pelos campos, entrar nos matos, molhar os braços nas sangas, olhar ao longe.

      Será uma doença? Uma melancolia incontida e suave, inofensiva até agora, mas insistente e a longo prazo perigosa? Que terei eu perdido na infância para viver obcecado por ela? As pessoas da minha meninice, que me ligavam à campanha, essas terras próximas à Banda Oriental, já se foram. Meus tios Ofir e Sueli, meu primo Carlos Henrique, meu avô Túlio, meu pai, cabo Vito. Já partiram, mas estão comigo, guardados comigo nas lembranças de cada dia, nos gestos simples, uma lufada de vento que derruba um vaso, o pio de um pássaro, um perfume de batata doce assada, a cor de uma espiga de milho, o estrondo de um trovão na quentura sem nexo do inverno, um cheiro de terra molhada, as pegadas de uma ave na areia, mesmo de um parque, a fumaça de uma chaminé enrolando-se no céu como uma espiral de silêncio, o som de uma sanfona, o cheiro de terra molhada.

      Crônica para mim é uma conversa junto ao fogão à lenha. É assim que estou falando enquanto me vejo debulhando milho na máquina vermelha. Outro dia, na Redenção, revi o pássaro amarelo do qual já falei aqui, cujo papo se levanta como um pomo de ouro por entre os galhos ensolarados. Também ele está guardado comigo, não numa gaveta, nem sequer numa gaveta da memória, mas nos olhos, que os olhos servem também para guardar o que admiramos e se perdeu na roda do tempo.

Eu lembro da sombra da figueira

Da louça azul na cristaleira

Dessas tristezas de jasmim

De ti brincando só para mim.

Eu me lembro da videira,

Das manhãs na cachoeira,

De nós sob os pessegueiros,

Nossos beijos passageiros.

Quatro mãos em desespero.

E a tarde caindo tão vermelha

Água tardia batendo numa telha

Zumbido magnético de uma abelha

Embriagada de mel e de vastidão.

Campos infinitos na janela

Águas irisadas de aquarela

E tu como um pássaro na manhã.

 

 

 


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