Em torno de uma velha fotografia

Em torno de uma velha fotografia

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 Fui amigo de Alain Robbe-Grillet, considerado o “papa” do chamado Novo Romance. Dele, traduzi Os últimos dias de Corinto, uma espécie de autobiografia cheia de ficção (como todas). Nessa linha, traduzi também O Bonde, de Claude Simon, autor francês que ganhou o Nobel de literatura. Fiz o convite, em nome do pessoal de Gramado, para que Robbe-Grillet viesse presidir o júri do nosso festival de cinema. Ele veio com a mulher. Passamos vários dias juntos. Os escritores do Novo Romance adoravam descrever objetos. Não se importavam muito com intrigas, que consideravam coisa de folhetim. Uma vez, Robbe-Grillet me disse numa carta: “Tu ardes de lembranças”.

Eu tenho o meu lado Novo Romance. Um colega, o Genaro, de quem há muito não ouvia falar, me enviou uma foto da nossa turma do Colégio Santanense, de Livramento, em 1976. Eu tinha 14 anos. Amplio a foto na tela do meu computador. Lá estamos nós. Três fileiras de oito adolescentes. Todos em pé. Ao lado, o professor, o irmão marista Alécio. Lembro-me bem dele. Onde andará? Uma vez, chamado à sua sala para levar uma carraspana por alguma das tantas molecagens que fazíamos, desmaiei na sua frente. Estava doente (não me lembro de quê). Fiquei um mês de cama. Olho a foto e me emociono. Alguém me disse que lembranças todo mundo tem e que isso não possui valor. Penso o contrário: a literatura é feita de lembranças transfiguradas, reconstruídas e armazenadas para sempre.

Olho a foto e vejo, no alto, sorriso angelical, o Genaro. Abro o facebook dele e um senhor de pouco cabelo, bigode farto e barba me fita. Ao lado dele, em nossa foto, um menino mais alto, de óculos, cujo nome ignoro, tem o ar mais juvenil que se possa imaginar. Desconheço praticamente todos, salvo, na primeira fila, me cercando, o Wanderlei, conhecido como Canifa, ou Canivete, bom de briga e de futebol, e o João de Deus, que virou brigadiano e poeta. Ao lado do Joãozinho, está a Fátima, que levei à matiné do cinema Internacional, mas de quem não tive coragem de pegar a mão durante um filme de faroeste, talvez assustado com os tiros ou com a mortandade de índios. Na mesma fila, toda de vermelho, vejo a Nara, linda morena, que todos admiravam e desejavam sem ousar confessar. Ela gostava, se bem me lembro, do Veca, que todos chamavam de Vaca. Ela terá sido feliz?

Paro e me observo com certa ternura.

Estou de pantalona preta. Uma enorme boca de sino. Uso uma camisa rosinha abotoada até em cima. Meu cabelo está crescido e com cachinhos atrás. Não resisto. Exclamo: é a minha cara! No extrema direita da primeira fila, uma menina, toda de azul, sorri candidamente. Tenho a impressão de conhecê-la bem, de ainda encontrá-la por aí. Seu nome não me vem. Atrás do João de Deus, vejo uma menina linda, muito séria, com um ar deliciosamente altivo, cabelos acima de ombro. Quem será? Ela me parece agora a mais bonita da classe. Como posso não saber o nome dessa guria pela qual devo ter me apaixonado muitas vezes sem jamais ter sido correspondido?

Olho a foto e me pergunto se já não escrevi sobre ela. Tenho uma vaga lembrança de um texto carregado de emoção sobre essa imagem. Não o encontro. Deve ser imaginação. Não, era outra, de um ano ou dois antes. Volta e meia, nomes de colegas me despertam no meio da noite como um afago: Pato, que era Jorge, Mozart, Gustavo Dornelles, desse me lembro o sobrenome, Luís Gonzaga, Cleia e Denise, que eu achava lindas, Mariuze, Jane, Cora, Lia, Ione. Alguns, moravam na rua Conde de Porto Alegre. Já me ocorreu, em rápida visita a Livramento, de caminhar por essa rua espreitando imagens da adolescência sem enxergar qualquer vestígio real do passado. Por que essas lembranças me balançam assim como um vento forte e triste que sopra cada vez mais intenso?

Genaro é diretor de hospital em Tramandaí. Olho outras tantas vezes a foto. Todos os meninos usam calças boca-de-sino. As meninas também. Uma, porém, usa uma saia curta, que não chega a ser mini, e veste meias brancas de normalista. Era assim que dizíamos, fantasiando. Tem os olhos quase fechados. As cores estão esmaecidas.

Tento captar um pensamento em cada olhar.

O triste das fotos é que cristalizam momentos cuja alma fica para sempre presa num passado silencioso e vagamente opaco. Como não me lembro desses meninos com quem devo ter brigado, chorado e comemorado gols incríveis no cimento do futebol de salão que servia também de pátio nos recreios suados e adorados?

O olhar em diagonal e os cabelos quase revoltos do Canifa remetem a um personagem de filme de François Truffaut. Eu, de minha parte, estou inteiro ali, estranhamente condensado nesse passado de congelamento sem temperatura nem estremecimento: a mesma introspecção que me assalta quando, de repente, sou focado por uma lente indiscreta, o mesmo olhar que se perde para não se deixar capturar por temor de ser decifrado, a mesma timidez sem medo vencida apenas pela vontade de voar ou de falar. Vejo 24 jovens, quase todos brancos. Tudo me intriga na foto, especialmente a menina de cima, atrás do João, com seu jeito, ao mesmo tempo, meigo e provocativo. Qual seria o seu nome? Clara, Mariana, Rose? Teremos sido amigos?

Eu escreveria, ou leria, um romance inteiro sobre uma fotografia.

fototurma1976

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