Entrevistas: Haroldo de Campos e a transcriação

Entrevistas: Haroldo de Campos e a transcriação

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"Deus é um poeta de vanguarda"

Crítico literário e intelectual erudito, Haroldo de Campos afirma que "Deus é um poeta de vanguarda, na medida em que a Bíblia é um grande poema inovador". Um dos criadores da poesia concreta, Haroldo de Campos, 64 anos, tradutor, poliglota, ensaísta e antes de tudo poeta e agitador cultural, elemento fundamental da hist6ria da literatura brasileira do século XX, esteve em Porto Alegre em abril de 1990 para participar de um ciclo de palestras promovido pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. Na ocasião, ele lançou Qohélet, o que sabe e Finismundo. E esbaldou-se nesta entrevista.

Da bela tradução do Eclesiastes, o senhor parece profundamente marcado por expressões como névoa-nada, que reaparece no poema Meninos, eu vi. O revolucionário concretista tomou-se cético?


Haroldo de Campos -Ninguém pode pretender traduzir o Eclesiastes, fundamental na força de sua raiz hebraica, e dizer que não se sentiu atingido. Esse poema é um dos ápices sobre a questão da finitude. Poucas vezes, o tema da morte foi tratado com tamanha altitude de elementos. É um poema radical. A minha posição em relação à poesia brasileira, no entanto, não é pessimista. Acredito no rigor e exijo competência. Conheço jovens cujo trabalho traz bons resultados, de Arnaldo Antunes a Nelson Ascher. O mais representativo de uma certa geração é o de Paulo Leminski: tradutor, poliglota e dono de uma experiência poética de vida extraordinária, mescla de Rimbaud e monge beneditino. Enfim, reconheço qualidades, insisto no rigor e quero ter tempo para cuidar de coisas importantes para mim.


Meninos, eu vi guarda certa relação com Pós-tudo, de Augusto de Campos, motivo de polêmica com Roberto Schwarz, para quem o senhor defendia a "poesia p6s-utópica", onde tudo estaria melhor por ter ficado pior. Haroldo de Campos é um sábio socrático que tudo viu mas nada sabe porque o conhecimento é inesgotável e fugidio ?


H. C. - A ideia do pós-utópico diz respeito ao que me parecia ser o encerramento do ciclo das vanguardas sempre portadoras de um componente de utopia. O pós-utópico postulava a tomada do presente com base na consciência crítica de décadas de atividade poética. O Schwarz pertence à crítica sociológico-marxista incapacitada para decodificar a poesia, área da qual nunca veio o novo, mas só a desconfiança contra ele. Essa gente está sendo colocada na lata do lixo da história pelos fatos. Dispenso-me de trabalhar com tal pensamento.


José Guilherme Merquior, em De Praga a Paris, escreveu que depois do estruturalismo a crítica literária passou a reger-se pelo seguinte imperativo: "Nunca trate a literatura como se fosse sobre qualquer outra coisa que não linguagem. " Há espaço para a narrativa de conteúdo ou o jogo é a marca do literário?


H. C. .Sem estabelecer um paradigma, penso que não se fará prosa relevante, mesmo épica, sem passar diretamente pelo problema da linguagem. João Ubaldo Ribeiro, em Viva o Povo Brasileiro, alia a capacidade fabulativa de Jorge Amado à paixão pela linguagem de Guimarães Rosa. Leminski, em Catatau, faz o caminho inverso: da linguagem à função épica. São obras diferentes e complementares, marcas criativas do bardo Ubaldo e do rapsodo Leminski.


Os pós-modernos asseguram que a era das vanguardas acabou. O que isso significa para quem, conforme Antônio Cândido, é um dos principais integrantes da última ação de literatura revolucionária de vanguarda no Brasil?


H. C. – Prefiro a vanguarda à retaguarda. Mesmo que não use o conceito de vanguarda e sim o de invenção, terei Camões, Goethe e Dante como inventores de linguagem. Na medida em que a Bíblia é um grande poema, inovador, e para muitos divino, Deus é um poeta de vanguarda.


Um grande poeta precisa ser poliglota (pelo menos seis línguas) e tradutor apaixonado ?


H. C. – Não. O melhor exemplo é Maiakovski, poeta mais importante e lido deste século, que era monolíngue. Mas o mundo planetário bombardeia o poeta com várias linguagens. Fernando Pessoa escreveu seu primeiro livro em inglês. Vivemos o universo plurilinguístico. Há nisso o aspecto da civilização. Na época de D. Afonso, o sábio, na Escola de Tradutores de Toledo, conviviam poetas de várias línguas e diferentes estilos. Signo de entendimento e civilização. O diálogo e o multilinguismo acabam por gerar espírito de tolerância e de aceitação da alteridade. A poesia passa por aí e toma-se sintoma de possibilidade de entendimento entre os homens. Toda literatura é fruto de transmigração.


A transposição de sua poesia para a linguagem do vídeo é o caminho natural de um trabalho anticonvencional?


H. C. .Desenvolvo um projeto com Júlio Bressane e os diretores de vídeo Cássio Moradei e Gil Hungria. Será uma série a partir de meu texto Galáxias, em três partes: Galáxia Albina, com Júlia Gam, já pronta, Galáxia Dark, com Beth Coelho, e Galáxia Ruiva, com Débora Bloch. Pretendemos levar isso à televisão comercial em seis capítulos de meia hora. O contato com Bressane, melhor cineasta brasileiro da atualidade, gerou um cinema de caleidoscópio, um barroco furioso, estilhaçado e vertiginoso.


Haroldo de Campos (concretismo) por ele mesmo.


H. C. – Na minha próxima conferência, vou ler poemas e mostrar minha permanente preocupação com o novo. O concretismo nasceu quando ainda dominava a geração de 45. Abordarei o tema com base nas críticas literárias de Sérgio Buarque de Holanda. Avancei oscilando entre a concreção e o barroco. Acabo de mostrar em Milão um pouco do concretismo. A poesia visual, derivada da concreta, está em desenvolvimento no Brasil, na Europa. Em São Paulo, Paulo Miranda e Omar Curi expõem sobre artistas que lidam com o espaço entre o visual e a palavra. A poesia concreta enquanto movimento coletivo encerrou-se. Isso não significa que os poetas ligados ao concretismo tenham parado. Eles seguem trajet6rias particulares. Augusto de Campos é o mais completo poeta interserni6tico entre nós. Pós-tudo tem ainda um pouco de concretismo. Eu passei do concretismo à concreção da linguagem, o que não caracteriza um movimento mas a própria poesia.


Abril de 1991 (O pensamento do fim do século, L&PM)


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