Entrevistas marcantes: Marilena Chauí e a filosofia

Entrevistas marcantes: Marilena Chauí e a filosofia

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"O marxismo vive"


Filósofa, professora da Universidade de São Paulo, ex-secretária da cultura da capital paulista na gestão de Luiza Erundina, militante do Partido dos Trabalhadores e feroz crítica da pós-modernidade, Marilena Chauí é uma brilhante intelectual. Nesta entrevista, ela dialoga com os críticos do marxismo, o pós-moderno e o neo-iluminismo.


JMS – Como a senhora analisa o discurso de Francis Fukuyama sobre o fim da hist6ria e a p6s-modernidade vista como era do marasmo, desencantamento ou, na contramão, a alternativa que vê esta época como de reorganização da sociedade civil, do surgimento de novas formas de fazer política, e, portanto, de reencantamento ?


Marilena Chauí – Com relação à ideia de fim da história, e que não é exatamente o fim da história, a ideia de que o capitalismo é o nosso destino, é um pouco como se se pedisse para um filósofo medieval conceber não o mundo, mas o inverso, não o geocentrismo, mas o egocentrismo, não uma ideia de ordem do mundo, contemplando uma hierarquia clara de todos os seres, em que cada um tenha o seu lugar, mas em vez de definir o mundo, a ordem aparecia para esse pensador medieval como desordem, sem hierarquia. Evidentemente ele diria que isso é impossível porque o mundo começa e termina com as hierarquias celestes. Evidentemente, "se se fala do interior do próprio mundo como a única formação social e política, a única expressão cultural, o único desenvolvimento temporal possível, diz-se que a história terminou conosco. É transformar, portanto, o instante do favor utópico que era dado pelo socialismo no rumo posterior e de destruição do capitalismo. É uma visão profundamente limitada, localista, mas sobretudo uma visão incapaz de considerar as contradições do interior da nossa formação social, política e econômica e incapaz de ver uma temporalidade que possa assustar . A ideia de que estamos destinados ao capitalismo além de ser extremamente pobre obscurece o problema da divisão teórica. Poder-se-ia imaginar o pós-modernismo como uma nova expressão cultural para além do modernismo. Isso seria verdade se as condições objetivas tivessem desaparecido. Mas essas condições objetivas são as condições objetivas do sistema capitalista, que está aqui. E a minha tendência não tem originalidade nenhuma, é uma tendência que eu compartilho com outros autores, é de considerar que o pós-modernismo é uma variante desencantada do modernismo e que exprime a crise atual do capitalismo. Então, eu não vejo uma originalidade no pós-modernismo. É uma posição reativa. O que ele propõe é a negação imediata e simples de categorias, normas e valores que foram defendidos pelo modernismo.


Em parte o pós-modernismo tem toda a razão, pois percebe o lado opressivo, repressivo, instrumental e de exacerbação na admiração existente na concepção modernista. Mas não propõe algo novo, o que propõe é simplesmente essa negação imediata das categorias modernistas. Eu acho que não é casual o uso das palavras negativas pelo pós-modernismo. Descentramento, descontinuidade, desconstrução, diferença, ou sejam ele toma ainda como referencial e como parâmetro as categorias modernistas. O que se tem, o que aparentemente seria novo, é que esse vínculo extremo do pós-modernismo com a volatilidade, com o passageiro, com o acidental, com o instantâneo, com a imagem como imagem, com a imagem como simulacro, com o signo pelo signo, só que, nem isso é inteiramente novo. Na medida em que é algo constitutivo também do modo de produção capitalista, a produção dessa aparência social. Vejo o pós-modernismo como uma crítica justificada do lado sombrio do modernismo, mas ao mesmo tempo como uma atitude reativa.


JMS – A possibilidade de que esta seja uma época de reencantamento, na medida em que haveria novas formas de fazer politica, substituindo as formas tradicionais, é falsa?


Marilena Chauí – Esse fenômeno ocorreu nos anos 60. Os anos 60 viram a proliferação, o desenvolvimento dos movimentos sociais, dos movimentos populares, a politização da sociedade civil e uma maneira de fazer política fora dos quadros tradicionais, que são os quadros partidários, os quadros do Estado. Mas o resultado disso acabou não sendo aquilo que a gente esperava. Porque o que nós todos esperávamos era a ampliação da democracia, a ampliação do discurso social e do poder social, ampliação da invenção e da criação de direitos. E em vez disso o que nós estamos vendo é a “guetização”. Os movimentos populares tendem a uma visão comunitária arcaica, o que eu chamo de tribalismo; tem-se o gueto feminista, o gueto social, o gueto ecológico, e, portanto, a esperança que nós tínhamos nos anos 60, aquilo que se convencionou chamar de contracultura, de que toda essa proliferação dos movimentos, sociais e populares, e toda essa outra maneira de politizar o social, deveria desembocar em novas formas de universalização e de generalização política, simplesmente caiu naquilo que o Lefort chama de apatia política. Em vez da invenção do político tem-se a reafirmação da política, isto é, do recorte institucional dado e que assume no caso dos movimentos o tribalismo, o corporativismo e o “guetismo”. Houve uma brecha, a possibilidade de uma invenção, e ela se perdeu.


JMS – Cornelius Castoriadis declarou aqui em Porto Alegre, inclusive numa entrevista, que o marxismo está morto. O seu ponto de vista não é o mesmo. O marxismo está vivo ? Outro aspecto é referente ainda à p6s-modernidade: não há o perigo de a sua abordagem da p6s-modernidade incorrer num reducionismo economicista? Por fim, ainda pensando em p6s-modernidade, de que p6s-modernidade a senhora fala? Existem inúmeros te6ricos falando de pelo menos duas pós-modernidades, uma que se poderia chamar de p6s- modernidade afirmativa, que parece ser essa que a senhora trata, mas também uma outra p6s-modernidade, que se poderia chamar de resistência.


M. C. – Não considero que o marxismo esteja morto. Por uma razão muito simples: o marxismo estaria morto se o capitalismo tivesse acabado. Não há nenhuma análise capaz de ir ao fundo do capitalismo, de compreender os mecanismos de constituição, de posição e de reprodução do capitalismo, senão o instrumental marxista. No dia em que me mostrarem que a mais-valia acabou, que não existe mais lucro, que a mercadoria desapareceu, eu direi que o capitalismo acabou, e que a análise marxista para o capitalista também acabou. Enquanto isso não acontecer, continuarei achando que o instrumental marxista precisa ser aprimorado, tenho enfatizado que é preciso fazer uma leitura não mistificada de Marx. Não considerar que Marx é a santíssima trindade, nem espírito santo, nem espírito de Deus Pai pairando sobre as águas; ele não é uma epifania, Rem uma teofania, é uma análise da História. Uma das afirmações mais contundentes do materialismo histórico sempre foi a afirmação de que se tem que fazer a análise concreta das condições concretas. E que o concreto é o concreto porque é feito de muitas determinações, unidades de diversos, e o concreto não é o empírico. Pode-se dizer que faltam categorias ao instrumental marxista, há categorias que estão superadas nesse instrumental teórico. Pode-se contestar a ideia de um caminho contínuo na dialética de conduzir o capitalismo ao socialismo. Há categorias novas, como, por exemplo, a do inconsciente e elementos novos, como a comunicação de massa, que devem entrarem linha de conta. A verdade é que uma obra de pensamento é constituída pelo texto do seu autor e pelos textos de todos os seus autores. De tal modo que a obra não está num texto determinado. A obra está no trabalho do pensamento pela sociedade. Naquilo que, não tendo sido pensado por ela, foi colocado por ela com o dever de se pensar. Com essa noção de trabalho da obra, o trabalho que o autor e o leitor realizam, constituindo o campo de questões, o campo de problemas, o campo de indicações, para análise e crítica, consideraria absurdo e abusivo dizer que o marxismo está morto. Qual pós-modernismo? O estudioso português Boaventura de Sousa Santos diz que o pós-modernismo surge da impossibilidade de mantermos as categorias modernas como categorias de análise. E ele diz: a dicotomia sujeito-objeto não funciona mais. A dicotomia natureza-cultura não funciona mais. A dicotomia determinismo-liberdade não funciona mais. A categoria público-privado não funciona mais. Ele enumera direito formal e direito material, enfim, ele enumera urna série de dicotomias constitutivas da modernidade, e que não fazem sentido. E que portanto se teria que trabalhar para além dessas dicotomias, no pensamento pós-moderno. Ora, se isso é verdade, então o pós-modernismo não é senão algo que os modernos conheciam. A discussão e a superação da dicotomia sujeito-objeto é o centro do pensamento moderno. E a discussão em torno da dicotomia espaço-tempo, público-privado... Caracterizar o pós-modernismo como a superação das dicotomias da modernidade não me parece ser pós-moderno no sentido de que haviam pensadores modernos que estavam a fazer isso. Se o pós-modernismo for caracterizado desta maneira, é pouco. Por outro lado, eu acho que o pós-modernismo retomou uma série de elementos que estavam difusos e dispersos nas próprias críticas do modernismo. Vou tomar como exemplo a questão da continuidade das continuidades, diferença, identidade. A crítica da noção de continuidade está vinculada a toda a crítica da ideologia do progresso. Como a crítica da identidade está ligada a toda a crítica que se faz a uma visão da repetição e da visão parmenidiana e platônica do ser. O que o pós-modernismo faz é eleger uma das categorias da dicotomia como aquela a partir da qual a realidade se torna inteligível. No par contínuo-descontínuo, escolhe a descontinuidade; no par identidade e diferença, escolhe-


se a diferença; no par centro e descentramento, o descentramento, e assim por diante. O fato de se apagar um dos lados da dicotomia e trabalhar só com o outro não significa, no meu entender, uma posição extremamente produtiva. Além disso, o pós-modernismo tem atrás de si dois pessimismos mais profundos: o pessimismo de Max Weber, que considera impossível escapar da racionalidade técnica e burocrática, portanto, a determinação impessoal iria, a razão instrumental iria à burocracia; e o pessimismo de Nietzsche que, apesar de falar das grandes valorações dos valores, ao se referir ao modelo da destruição criativa e da criatividade destrutiva, apontava para o além do humano que ele próprio não via como seria possível se realizar, a não ser na forma de eterno retomo.


JMS – Esta análise que a senhora está fazendo aqui se afasta do texto de sua conferência em Porto Alegre, no seminário A Criação Hist6rica, na qual transpareceu certo economicismo...


M. C. – Não. Só seria uma explicação economicista se eu quisesse tirar da determinação econômica a causa e a gênese do pós-modernismo. Sigo demais Merleau-Ponty e Spinoza para ser economicista. O que eu quis enfatizar é que é muito abstrato se tomar o iluminismo e o pós-modernismo como eventos culturais sem raiz material, isto é, sem estarem enraizados em relações sociais, em relações políticas e econômicas. Então aí é que eu finquei pé na questão econômica, porque ela é menos mencionada. Discute-se a política em vínculo com o pós-modernismo, as questões sociais em vínculo com o pós-modernismo, mas não o econômico.


JMS – Como se situa a relação polêmica entre mercado e planejamento depois da derrocada do leste europeu ? Quais seriam os predicados na sua utopia política e econômica?


M. C. – Os Estados Unidos e a Inglaterra atravessam a mais perigosa recessão que eles já conheceram. O Japão digladia-se com Coreia, Taiwan, Hong Kong e China. A Alemanha está apavorada com a situação do leste europeu. A comunidade econômica europeia que se consolidaria em 92 está perigando na medida em que essa consolidação tinha pressuposto a ausência da Europa do Leste. A Europa tem que enfrentar o Terceiro Mundo do seu próprio interior, os Estados Unidos têm que enfrentar a mais vigorosa recessão que já conheceram, a mesma coisa acontece com Inglaterra, e o Japão não está tranquilo. E há todo o problema da instabilidade do Oriente. A euforia da Guerra do Golfo é incapaz de escamotear que o conflito entre Israel e os palestinos, a posição da Líbia, do Irã e do Iraque é extremamente firme e estável do ponto de vista da região política norte-americana. O que se tem é um outro tipo de euforia. É que melhora a euforia econômica. Tem-se uma euforia militar. Os Estados Unidos comparecem na cena mundial numa perspectiva geopolítica, na qual são a polícia do mundo. A dissolução da União Soviética implica dispersão do armamento nuclear. Os Estados Unidos não sabem o que pode acontecer com esse armamento nuclear nas mãos das repúblicas. O perigo militar é muito grande, recoberto por uma euforia de polícia do mundo. A ideologia da liberdade neoliberal coloca-se como a única escolha possível para os países do leste europeu. É muito cedo para que isso venha a acontecer. Com relação à posição mercado e planejamento, é uma posição irreal. O mercado, sobretudo na linha fordista, se constituiu a partir da noção de planejamento. E hoje o que se tem é o planejamento feito de outra maneira. Em vez de grandes aglomerados globais, tem-se o planejamento ad hoc, e o recurso contínuo do capitalista coletivo internacional, que são o FMI e o Banco Mundial, reguladores intervindo no mercado. Particularmente, o que se tem é a mudança na forma de planejamento, da qual a parafernália eletrônica se tornou importantíssima. A parafernália eletrônica introduziu a noção instantânea sobre o planeta e determinou a tomada de decisão, que não é feita por planejamento. O planejamento é instantâneo, com o funcionamento do banco de dados. Então, o planejamento capitalista é anárquico por incidir ininterruptamente sobre a ação de planejamento


Setembro 1991 (republicado em O pensamento do fim do século, L&PM)


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