Era uma vez a nossa juventude

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Na montanha



Era um tempo em que se lia “A Montanha mágica”. Um tempo em que se queria acreditar no começo desse livro monumental: “Queremos narrar a vida de Hans Castorp – não por ele, a quem o leitor em breve conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático, mas por amor a esta narrativa, que nos parece em algo grau digna de ser relatada”. Era isso. Um tempo em que acreditávamos na dignidade de certas narrativas. De certo modo, alguns sentiam-se parecidos, ainda que nenhuma evidência fosse observada, com Settembrini, o anarquista, humanista e enciclopedista italiano da digna narrativa do genial Thomas Mann. Que tempo estranho! Terá de fato existido?

Nesse tempo se lia também “O grande mentecapto” e “O encontro marcado”, de Fernando Sabino. Livros pesados, autores leves. Livros leves, autores pesados, ainda que donos de estilos fluentes. Esse tempo tão distante parecia envolto numa bruma. Fumaça de cigarro. Buscava-se a cada noite um afastamento da planície. Todos sonhavam em ser escritores e gastavam os seus dias na laboriosa preparação para o “grande salto”. Era assim que chamávamos a publicação do primeiro livro. O método consistia em ler o máximo possível os grandes autores, discutir incansavelmente e procurar a narrativa digna de ser feita. Ninguém se achava chato. Muitos nos achavam “malas”. A literatura só não estava acima do sexo. Havia quem visse no sexo a melhor forma de começar um livro.

Hoje, passado um quarto de século, dobramos o cabo dos 50 anos e andamos pensando na vida e nas suas fragilidades. Uns tiveram filhos e escreveram livros. Outros, como eu, publicaram livros, mas não tiveram filhos. Ricardo Carle, o mais parecido com Settembrini, morreu sem filhos e sem ter feito o seu grande livro. Lê-se quase ao final de “A Montanha mágica: “Como era curioso o enredo dos fios produzidos por essas relações!” Pensávamos o mesmo das nossas ligações. Estávamos mais para rapazes simpáticos como Castorp do que para Settembrini. Todas essas associações me vieram à cabeça quando, depois de colocar mais uma vez o ponto final nas 530 páginas do meu livro “Jango, a morte no exílio”, parei e fui reler o texto de meu amigo David Coimbra intitulado “meu câncer”. De arrepiar. David escreverá ainda muitos livros. Tem filho para criar. Tomou um susto. Assustou a todos nós. Dará muitos grandes saltos.

Nunca sei se vivemos tudo isso como estou narrando ou se criei esse imaginário por considerar que é uma narrativa digna de ser relatada. Sei que amávamos os livros, as narrativas, as festas e os fios que teciam as nossas relações. Para mim, jovem do interior, tudo começou com a audácia do meu primo Eleú, que me trouxe de Santana do Livramento para morar numa pensão em Navegantes e, depois, no Sarandi. Quanto história digna de ser narrada como literatura. Pois a literatura é a mágica de levar nossa planície à montanha e de voltar para contar o que se viu e, principalmente, o que se pôde sentir. Cada vez mais, eu me pergunto: terá mesmo existido esse tempo de sonhos em que se lia Thomas Mann?

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