Erico Verissimo e o regime militar

Erico Verissimo e o regime militar

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Em 1995, afirmei, com base em depoimentos de alguns intelectuais fustigados pelos militares golpistas, que Erico Verissimo não brilhara pela coragem nos engajamentos políticos. Houve muita polêmica. Sempre há polêmica. Nada mudou. Certas pessoas não vivem sem mitos e fazem o que podem para proteger os seus. Depois das minhas críticas feitas há 17 anos, professores organizaram e lançaram “A Liberdade de escrever”, coletânea de entrevistas dadas por Erico entre 1963 e 1975, como ato de desagravo à memória do autor de “O Tempo e o vento”.

Li todos os livros de Erico Verissimo.

Nunca entro desarmado numa discussão.

Quanto mais uma afirmação é desconcertante e desmistificadora, mais provoca a ira dos que imaginavam saber tudo sobre um ídolo “incontestável”.

“A Liberdade de escrever”, concebido para provar que Erico Verissimo foi um paladino da luta contra a ditadura militar brasileira, mostra outra realidade, a de que Erico sempre teve problemas com a esquerda e com a crítica literária. Com enorme sucesso de público, o escritor foi quase sempre contestado, criticado e atacado por intelectuais marxistas em luta contra a ditadura. Morto, virou intocável. Mito de província. É curioso que os organizadores do livro, todos da área literária, conhecedores de hermenêutica, não tenham percebido o quanto as entrevistas, sintomáticas, revelam mais sobre a ambiguidade de Erico do que sobre sua combatividade.

Pode-se demonstrar isso com base no texto publicado. Interpelado pelos entrevistadores, Erico passa o tempo todo empenhado em convencer que não é omisso. Claro sintoma de que pesa sobre ele a acusação de «alienação» (palavra em moda na época). Em 1963, entrevistado por José Ney, Erico condena o stalinismo, a exemplo de alguns espíritos autônomos e de pencas de conservadores, e recusa terminantemente a ideia de revolução (de esquerda) no Brasil, alegando que seria o «caos, a fome e possivelmente o fim da unidade nacional». Para ele, havia muita gente pregando «a revolução pela revolução», sem saber o que viria depois. Um discurso, no contexto daquela época, claramente conservador e antijanguista.

Interrogado a respeito das Reformas de Base, concorda com a necessidade delas, mas  ressalva que devem ser executadas por gente honesta, disseminando uma suspeita em relação ao governo de Jango. Lembra, em tom de conservadorismo revestido de cautela, ao gosto dos que atacavam o governo, que a reforma agrária pura e simples não resolveria os problemas do Brasil. Cutuca Leonel Brizola, inimigo número um dos conservadores e dos militares golpistas, por não falar da «espoliação por causas internas» (corrupção) e, como todo bom conservador contrário a mudanças estruturais, apresenta-se convencido de que o mais importante seria «uma reforma do caráter» dos brasileiros. Na ocasião, pragmaticamente, defendia a «socialização com democracia» Não estava satisfeito com as estripulias do governo do gaúcho João Goulart.

Em entrevista histórica a Clarice Lispector, sua amiga e admiradora, em  1967, publicada pela Manchete, com o sugestivo título de “Não sou profundo (interlocução com a crítica adversa)”, aparecem alguns elementos mais relevantes sobre as posturas do escritor. Clarice pergunta-lhe: «Erico, por que você acha que não agrada aos críticos e aos intelectuais?». A resposta é desconcertante e informativa: «Para começo de conversa, devo confessar que não me considero um escritor importante. Não sou inovador (...) Os esquerdistas sempre me acharam «acomodado». Os direitistas me consideram comunista».

Erico admitia, já em plena ditadura, que a esquerda sempre o considerara «acomodado» (alienado, desengajado, etc.). Ao mesmo tempo, desviava a questão da crítica. Hoje, os seus guardiães não aceitam qualquer ressalva ao talento do escritor Erico Verissimo. Na época, era comum considerá-lo superficial. O Erico posterior a “O Tempo e o vento”, evidentemente, não é o mesmo da primeira fase, descrita por ele mesmo como feita de livros apressados, pois tinha de sustentar a família.

Ainda em 1967, Adolfo Braga, interpela-o: «Você tem sido acusado de viver numa torre de marfim, de ser um escritor alienado». Não é preciso ser psicanalista ou mestre em exegese para compreender o significado dessa interpelação. Jorge Amado com certeza, para bem ou mal, nunca deve ter enfrentado esse tipo de provocação constrangedora. Erico indigna-se: «Isso é uma estupidez; uma tremenda estupidez. Essas pessoas que dizem isso, num certo tempo escreveram odes a Stalin e hoje estão arrependidas». A história deu razão a Erico em muitos aspectos da sua luta contra o extremismo de esquerda. A exemplo dos militares, na ditadura, Erico estava mais preocupado com a esquerda do que com a direita.

Adolfo Braga descreve Erico levantando-se para buscar o texto de uma conferência pronunciada em abril de 1944 na Universidade da Califórnia. Denúncias contra os horrores da guerra. Diz o entrevistador: «Quando ele me impede de fazer qualquer anotação, percebo-lhe o único desejo de me convencer da sua sinceridade...» Em 1967, o famoso Erico precisava convencer um jornalista de sua sinceridade quanto ao seu engajamento diante da barbárie. Necessitava mesmo enfatizar: «A prova de que não sou um homem não-engajado é que sempre houve a suspeita de que sou subversivo». Mas, naquele instante, a suposta subversão passa a ser a evidência capaz de superar a suspeita do seu não-engajamento.

Com razão, Erico recusava a literatura panfletária. Livros como “Incidente em Antares” mostram todo o seu humanismo. Literatura anticonformista de um homem «acomodado». O conservador Balzac produziu uma obra revolucionária. O reacionário Borges concebeu livros libertários. O nazista Céline criou obras-primas. Nem por isso se pensa em transformar os homens Balzac, Borges e Céline em modelos de progressismo. Erico era, na melhor das hipóteses, um liberal com preocupações sociais bissextas. Sem maiores arroubos. Normal. Ninguém tem a obrigação de ser revolucionário. Não se deve, porém, dar a Cesar o que não lhe pertence.

Em 1970, no período negro de Médici, em entrevista a Maria Dinorah, Erico achava que a tecnologia estava tornando «as posições de esquerda e de direita obsoletas». Uau! Era o auge da oposição direita/esquerda. A direita pretendia acabar com essa oposição eliminando fisicamente a esquerda. Difícil de encantar as vítimas da ditadura com tal declaração. Mas, ainda em 1970, Erico, em pronunciamento lido por Paulo Brossard, contestaria a portaria que impôs a censura prévia no Brasil. Num texto genérico, sem qualquer referência à tortura, aos exilados, aos mortos, aos desaparecidos, à guerra suja, o escritor defendia (com razão) a liberdade de expressão, base de todo processo criativo. A rigor, as manifestações de Erico, provocadas pelos jornalistas, diriam sempre respeito à censura, tema da alçada de um escritor. Nada muito além disso. Não era pouco. Não era muito. Afinal, a fama de Erico Verissimo dava-lhe imunidade para um pouco mais.

A ambiguidade torna-se inquietante na entrevista concedida a Paulo Totti, da Veja, em 1971. O repórter pergunta: «O Brasil de hoje o satisfaz?» A resposta é estarrecedora: «O Brasil de ontem não me satisfazia. O Brasil de hoje ainda não me satisfaz por completo, mas reconheço que agora se fazem coisas positivas, que seria fanatismo ou insensatez negar. Estamos enveredando economicamente para rumos melhores». Na sequência, Erico ressalva que não concorda com a censura. Mas o projeto econômico e social da ditadura não o incomoda. Apenas os fanáticos e insensatos poderiam, segundo ele, discordar disso. Ao final da resposta, vem o estupor: «Não creio que o regime brasileiro que aí está queria imitar os soviéticos». Dos males, portanto, a nossa ditadura era o menor.

Erico, em 1971, não sabia o que se passava no Brasil? A União Soviética parecia-lhe mais perigosa do que o regime de Médici? Como não horrorizar a esquerda que morria por seus ideais com esse tipo de afirmação? De fato, os militares não queriam imitar a União Soviética. Totti quis saber se “Incidente em Antares” fora submetido à censura prévia. Erico ultrapassa todos os seus limites cautelosos. Atira-se na água. Afirma que o livro não foi examinado por ninguém, enfatiza a sua recusa a esse tipo de procedimento e derrama-se em elogios a Médici: «Quero acreditar que um gauchão de Bagé como o presidente Garrastazu Médici, que já foi libertador e combateu uma ditadura estadual, não queira imitar, nem de leve, os governos de opressão, retrógrados e prepotentes. Ele sabe, e seus ministros e assessores também, que, para promover o desenvolvimento, construir a Transamazônica, etc., não é necessário censurar livros ou outros meios de expressão».

Erico não sabia, em 1971, que o gauchão de Bagé já consumara o mais terrível período de opressão e prepotência da ditadura brasileira? Não sabia que a Transamazônica e outras tralhas eram formas de propaganda de um Brasil grande e autoritário? Diz o que diz como estratégia retórica para amaciar o ditador? Seria ingenuidade demais ou esperteza excessiva. Paulo Totti entrou também na delicada questão da crítica. Erico endureceu: «...eu estaria perdido se fosse levar a sério todos os críticos e recenseadores de livros do Brasil, principalmente os que sistematicamente me atacam ou ignoram». Assim.

Eis o Erico de 1971, quase ao fim da vida, desprezado pela crítica, suspeito aos olhos da esquerda militante, entusiasta do modelo socioeconômico da ditadura. Avesso à censura. Sim.

Erico por ele mesmo.

Por que Erico não se exilou nos Estados Unidos para atacar sistematicamente, em grandes jornais americanos, a ditadura brasileira? Falta de recursos? Comodismo? Ora, Erico parecia acreditar que nem tudo estava mal no Brasil de Médici, mesmo preferindo o sufrágio universal e a democracia. Em 1971, em entrevista a Celito de Grandi, Erico, oscilando, fala em «atmosfera de medo» no Brasil e clama pela liberdade de imprensa. Ainda em 1971, entrevistado por Norma Mazola, explica-se sobre as ironias que fizera na apresentação de “Incidente em Antares” ao lado «carrasco» da crítica. O escritor desconversa, diz que foi brincadeira. Sofre com as críticas.

Em 1972, em entrevista a Jorge Andrade, da revista Realidade, ataca novamente a censura. Mas é na entrevista ao jornal Opinião, em 1973, que irá mais longe no assunto e na contradição: «Repito que sou contra a censura, mas devo qualificar essa minha posição. Só merece liberdade quem tem consciência de sua responsabilidade profissional». Era o que pensavam os militares. A porta ficava aberta para a limitação da liberdade de expressão aos que não se enquadrassem na categoria dos «responsáveis» profissionalmente. Em seguida, Erico derrapa feio: «Ninguém é criminoso por ter ideias... a não ser que se trate de ideias que levem deliberadamente ao niilismo, ao crime, ao caos». Extraordinário. Para a ditadura, a guerrilha urbana, com assaltos a bancos e sequestros de embaixadores, levava justamente ao crime, ao caos e à descrença nos valores da pátria. Eram criminosos os que levavam o país ao caos lutando contra a ditadura que melhorava os serviços postais, abria a transamazônica e evitava o comunismo. Uau!

O pensamento de Erico casava perfeitamente, com suas nuanças e ressalvas, com o dos ditadores.

Estimulado, Erico assegurava que a inibição de artistas e intelectuais brasileiros derivava da censura. Categórico, salientava que não gostaria de ser a exceção. Interrogado sobre o clima de euforia vivido no Brasil a partir de 1968, Erico entrega o jogo. A pergunta é simples e direta: «Ao seu ver, se justifica esse clima de otimismo?». Resposta pacífica e satisfeita: «Acho que se justifica. Nesses últimos anos, o Brasil tem crescido e em alguns setores as melhoras são visíveis a olho nu. Está claro que só temos estatísticas oficiais e nunca sabemos ao certo do que se passa nos bastidores da política. Não posso negar a Transamazônica, a melhor qualidade dos serviços postais e muitos outros empreendimentos. O que eu acho é que tudo se poderia fazer num regime democrático, dentro da velha Constituição, contanto que ela fosse realmente cumprida a rigor». Mais uma insinuação contra os desmandos da era Jango. Entre o reformismo janguista e o regime militar, Erico ficava com o militar, mais seguro, preferindo, claro, como os próprios militares sustentavam, a democracia.

Uma democracia responsável.

Erico sempre encontra alguns elogios para o regime militar, mesmo quando investe contra a censura: «Não creio que o Exército nacional queira passar para a nossa história como o guardião e o executor dessa lei medieval. Os seus oficiais, em sua maioria, além de terem feito cursos de alta cultura, devem ter lido A Ascensão e queda do III Reich” (18 de dezembro de 1971). Os mais otimistas veriam aí uma denúncia contra uma nazificação do Brasil. Possibilidade aniquilada prontamente pela confiança de Erico nos cultos oficiais do Exército nacional.

Por que ele não falava de mortos, de torturados, de desaparecidos, de cassados? Por que não falava da miséria, das profundas desigualdades mascaradas pela ditadura? Não publicariam? Corajosos eram os jornalistas, sem a fama do escritor, que se atreviam a interrogá-lo sobre censura e outros assuntos. Muitos entenderão que Erico estava certo em suas posições. Na época, elas contrariavam quase todos os ideais de quem morria por uma utopia ou contra a falta de democracia e a repressão. As posturas de Erico revelam o liberal preocupado com a liberdade de expressão. Nada mais. Era muito. Era pouco. O golpe de 1964, explicava Erico, resultara, entre outras coisas, da falta de habilidade de Brizola e dos erros dos políticos, desde a implantação da República acostumados a envolver os milicos em suas revoluções. Culpar Brizola faz parte do discurso clichê dos americanos, dos militares golpistas e dos defensores da ditadura ao longo do tempo. É discurso oficial.

Enfim, na entrevista a Heloneida Studart, já em 1975, Erico comenta o seu apoio à candidatura oposicionista de Paulo Brossard ao Senado, ao qual escrevera: «O Senhor é um advogado dos homens. Não pertenço a partidos políticos. Mas tenho que estar ao lado de tudo que defenda a liberdade — uma grande causa de todos os homens». Erico defende o princípio da democracia e afirma que para os abusos deve haver uma lei de imprensa.  Até o fim da vida, Erico Verissimo não se livrou das marcas de escritor superficial e de homem desengajado. As críticas à censura e o apoio à candidatura de Paulo Brossard deram-lhe fôlego face às eternas reticências. Apenas a morte e o trabalho dos seus guardiães puderam transformar o permanente acossado em um intocável.

Em várias épocas da sua vida, Erico discorreu aqui e ali contra os totalitarismos. Manifestações episódicas, por vezes sabiamente mantidas na esfera dos princípios (sem substância histórica capaz de gerar o impasse). Os organizadores de “A Liberdade de escrever” talvez tenham escolhido mal as entrevistas de desagravo. Nelas, Erico não aparece uma só vez como um Cabrera Infante esbravejando contra a ditadura cubana (com carne, nomes, cifras) ou como um dos tantos escritores latino-americanos de renome que se exilaram na Europa e desferiram potentes artigos contra os regimes ditatoriais dos anos 60 e 70.

O liberalismo de Erico, expresso nas entrevistas de “A Liberdade de escrever”, é digno, mas insuficiente num tempo negro de opressão e tortura. Nisso tudo, entretanto, o fundamental é o seguinte: pesava sobre Erico, conforme revelam os textos citados, o estigma de não se comprometer politicamente num momento crucial e de ser um escritor superficial. Exageros de uma esquerda stalinista? Sim, em parte. Mas essa esquerda, vale repetir, morria por seus ideais e pela redemocratização do Brasil ou fugia do país, enquanto Erico ainda pensava que Médici seria incapaz de implantar um regime de opressão e de prepotência, encantava-se com a Transamazônica e com os serviços postais, achava, em 1973, justa a euforia com o modelo socioeconômico pós-1968 e elogiava o ditador.

Dissimulado, Erico atravessa as entrevistas afirmando não ser grande escritor, «apenas um contador de histórias», até que, em 1972, na conversa com Jorge Andrade, explode e ataca a literatura brasileira: «Rotularam-me de superficial no começo de minha carreira e esse rótulo ficou até hoje para qualquer coisa que escreva. Acho que também tem havido muito exagero a meu favor isso me irrita (...) Fico intrigado e irritado quando, dentro da literatura brasileira, que não é excepcionalmente rica em grandes escritores, sou tratado como romancista menor, o que não é justo. Posso ser menor num plano internacional, mas não no nacional».

Erico não era «covarde», apenas «acomodado».

As críticas empurraram-no, certamente, para um pouco de engajamento, contra a censura, nos anos 70.

Ao longo da ditadura, porém, atacou mais o esquerdismo que o direitismo. Como um bom liberal.

Eu poderia escrever mil páginas com mais elementos sobre a relação de Erico com a ditadura.

Poderia escrever mais mil páginas sobre como “O tempo e o vento”, com sua aparente neutralidade, mitifica o Rio Grande do Sul como um épico tardio.

Não o farei.

Vou jogar futebol.

Gosto de Erico.

 

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