Estado, tigrões e tchutchucas

Estado, tigrões e tchutchucas

O Brasil se revela nos seus insultos

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      Um país se revela na sua concepção de Estado, nos seus insultos e na sua proposta de aposentadoria, que é a forma como pretende tratar os idosos depois de uma vida de trabalho.

Uma importante obra que li na juventude e releio sempre que posso se chama “As concepções políticas do século XX”, de François Châtelet e Évelyne Pisier-Kouchner. Os autores partem de uma ideia simples e famosa: a tipologia de Estado ou de exercício do poder citada por Heródoto – poder de um só, poder de um grupo, poder da massa – não se sustenta mais. Tudo se interliga em maior ou menor grau. Um presidente tem algo de monarca transitório, mas só governa amparado num grupo e, não sendo uma ditadura, pelo voto do povo. Os autores propõem, então, outra classificação: Estado-gerente, Estado-partido, Estado total e Estado-cientista. A matéria é instigante.

      O Estado-gerente é o modelo preferido dos liberais ou praticado por eles com imperfeições apontadas como a predominância do formal sobre o concreto. Administra supostamente em nome do cidadão. Busca respeitar o existente e reformar para melhorar e rejeita rupturas institucionais (salvo na América Latina). Situa-se entre o conservadorismo e o socialismo. Já o Estado-partido povoa o imaginário da esquerda marxista. De certo modo, o PT tentou no Brasil, ainda que procurando por cautela não escancarar a sua concepção, governar desse modo.

O Estado total remete aos totalitarismos da primeira metade do século XX. Em tempos de polêmicas baratas, os autores podem ajudar a compreender matizes. Segundo eles, o fascismo e o nazismo “negam o valor do homem enquanto tal e distinguem os homens segundo sua inclusão numa coletividade racial ou estatal, ou, mais simplesmente, segundo as pseudo leis da genética”. Para eles, “também o marxismo-leninismo não se vale do humanismo”. Mas não por razões biológicas.

O Estado-cientista, embora a expressão seja pouco usada, está em voga. A base é o uso da tecnologia para controlar comportamentos. Por um lado, promove transparência e segurança. Por outro lado, vigia, controla, disciplina, pune e inspeciona cada ação. Encontra amparo, se necessário, numa afirmação de Freud: “O homem civilizado troca uma parte de felicidade possível por uma parte de segurança”. No momento, pela segurança, propõe-se abrir mão de muita liberdade.

A nova direita mundial, defendida por ideólogos como Steve Bannon, apoia uma quinta categoria: o Estado-rede social. Conservador em costumes, liberal em economia, mas protetor de interesses econômicos nacionais se necessário, centrado numa figura carismática, não em partido, de imaginário religioso e uso de tecnologias de comunicação de ponta, busca estabelecer o poder de um a partir do voto do povo, sustentado por um grupo de adeptos, mas recorrendo permanentemente à relação direta com a massa para se livrar da intermediação dos representantes eleitos. A ideia é reforçar o executivo, enfraquecer o legislativo, dar cunho moral expeditivo ao judiciário e legitimar decisões nas redes sociais.
Zeca Dirceu insulta comparando homem com mulher.

Paulo Guedes ofendeu-se. Xingou a mãe e a avó do petista.

Eis o Brasil. Inexiste separação entre público e privado.

Guedes quer Estado mínimo. Zeca, máximo.

Para Guedes, aposentados representam o passado. Podem ganhar menos. A sua estratégia é jogar o futuro, educação, contra esse passado, pessoas que buscam a aposentadoria.

Banqueiro, liberal, o ministro da Economia, agora tratado nas redes sociais de Paulo Tchutchuca Guedes, quer um Estado que gerencie a vida de todos em prol dos interesses de poucos, A aposentadoria por capitalização será o El Dorado dos bancos. Enquanto isso, o bolsonarismo quer um Estado total nos costumes, capaz de administrar comportamentos privados.

O bate-boca, como toda briga de boteco, errou na forma. O conteúdo é sintomático.

Publicado em 1981, “As concepções políticas do século XX” mantém-se atual e pode ser complementado. Um dos seus capítulos trata do questionamento do Estado. Forte naquela época, tem menos peso hoje? Não tive tempo de ser leve. Nas redes sociais, estaria morto. O homem da internet vive de risadas e de provocações. É o seu estado. O Brasil revela-se quando insulta.


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