Eterna Ângela Maria

Eterna Ângela Maria

publicidade

Foi ao show de Ângela Maria.

Está velhinha. Mas como canta.

Vou contar tudo como preparei.

Tudo depende de como a gente sente e conta. Certa vez, cobrindo o Festival de Cinema de Berlim como correspondente na Europa, assisti a “O silêncio dos inocentes” ao lado da cantora Laurie Anderson. O filme, história de um canibal, me assustou tanto que eu podia, num surto psicótico, ter matado a artista. Foi o que escrevi na época. As prisões alemãs felizmente perderam um hóspede. Nunca quis morar em definitivo fora do Brasil. Nem com tudo pago por um Estado. Nesta semana, fiz uma entrevista com Ângela Maria para o Caderno de Sábado. Sou fã de carteirinha dessa extraordinária cantora brasileira. Gosto da sua voz, do seu repertório e da sua história vitoriosa na MPB.

Conversa vai e conversa vem, como num bom papo de bar capaz de ser publicado num jornal, questionei Ângela sobre o seu primeiro grande sucesso, acontecido nos anos 1950, com Getúlio Vargas reinstalado no poder. Ela não se conteve. Soltou a voz. Começou a cantar “Não tenho você” no meu ouvido. Dito assim, o leitor pode imaginar uma entrevista presencial com intimidade. Foi por telefone. A sensação, porém, foi maravilhosa. Ângela Maria cantando ao vivo só para mim. Um cronista vive dessas pequenas grandes histórias. São elas que povoam um imaginário. No Festival de Cinema de Cannes, Béatrice Dalle, atriz cult nos anos 1990, me concedeu uma entrevista exclusiva, contrariando a vontade da sua assessoria de imprensa, depois que eu lhe disse ter atravessado o oceano só por causa dela.

No começo, achei que tinha sido uma mentira providencial. Depois, percebi que era verdade. Bem, meia verdade. Eu atravessaria o oceano só para entrevistá-la. Foi o que eu disse, assim, no condicional, para Jeanne Moreau. Ela balançou a cabeça, fez um gesto negativo com a mão e seguiu em frente. Nunca mais usei o condicional diante de uma mulher famosa. Isso me garantiu, em Veneza, uma bela entrevista com Geraldine Chaplin. Disparei: “Estou aqui por sua causa”. Ela riu e disse: “Vai ser meu escravo”. Aceitei na hora. Depois da entrevista, ela me alforriou. Ângela Maria, quase aos 86 anos de idade, esbanja vitalidade na voz poderosa. “Nunca me meti em política”, diz, rindo, antes de enfatizar: “Me dei bem”.  Mas ela se meteu, tardiamente, ao se candidatar à vereadora, em 2012. Não se elegeu. Ângela é a impressão digital de outro tempo, um tempo analógico e com seu romantismo, o romantismo que ela canta e lamenta o desaparecimento. Quando ouço Ângela, comovido, pensou que sou mais velho do que sou.

Eu nasci em 1962, no período parlamentarista do governo de João Goulart. Mas minha alma é dos anos cinquenta para trás. Gosto dos chamados cantores de voz, embora não despreze João Gilberto e sua bossa nova. A voz de Ângela Maria me faz sentir saudades até daquilo que não vivi. Talvez ela tenha razão: o tempo dos grandes compositores, dos letristas poetas, dos gênios populares, passou. Eu sou saudosista confesso. Tenho saudades desses poemas musicados que falavam docemente de tristezas que ficavam bonitas. Havia certo masoquismo nesse gosto por cantar a melancolia. A arte não é feliz. Já estou com saudades de ouvir Ângela Maria contando no meu ouvido.

O show de Ângela Maria em Porto Alegre me emocionou.

Não encheu.

O público de Ângela está rareando.

A maioria era de velhinhas lá pelos 80 anos. Minhas leitoras.

Os maridos já foram ou ficaram em casa de pantufas?

Não sei.

Nos próximos dias, publicaremos a entrevista que fiz com Ângela.

Ela adoraria ter sido mãe. Não foi.

Embala a nossa nostalgia.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895