Eu sou poeira cósmica

Eu sou poeira cósmica

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Vejo os livros na praça e estremeço como se meu corpo fosse uma página. Uma dessas páginas rabiscadas, dobradas e esquecidas. Cada barraca é um mundo que se perpetua sob a proteção de uma esquálida capa. Sinto medo de que o próprio corpo humano seja uma tecnologia superada. Tem certos dias em que no olhar de cada um de nós se acende uma tristeza sem motivo aparente. Tristeza de cão sem dono. Ficamos perdidos em nosso velho território. O olhar se evade sem poder sair do lugar. Contempla o vazio cheio de evocações que já não se materializam. O que tememos? Olho meus olhos no espelho e percebo os rastros de um universo em decomposição. São olhos de ler. Olhos que têm passado a vida devorando papéis. Olhos coalhados de interpretação.

Falar em decomposição revela uma nostalgia capaz de afastar espíritos mais novos e autodenominados abertos. Em princípio, o apocalipse não é o fim, mas o começo. Talvez eu me sinta como aquilo que somos e seremos, poeira cósmica, arranhando letras salpicadas em páginas que se eternizam em livros passageiros. Quanto exemplar que jamais foi aberto, quanta frase que nunca foi lida, quanta aposta não conferida, quanto sonho abandonado na esquina de uma conjunção adversativa! Ando pela praça como quem se espreme para entrar em túneis, sair de labirintos, saltar casas num jogo de amarelinha, capturar palavras cruzadas que se perderam em bifurcações. Sei desde muito tempo que sou um fantasma em busca de obras perdidas no sonho.

A Feira do Livro é cada vez mais metáfora de um tempo, de um espírito, de um estilo, de um modo de estar no mundo. Imagino um livro contando a história da chegada de extraterrestres a Porto Alegre. Eles descem de naves sofisticadas e parecem nossos velhos conhecidos: cães, bois, cavalos, porcos, todos falantes. Trazem seus animais de estimação: seres humanos que não falam nem escrevem. Minha mente se volatiliza. Meus olhos se escurecem. Sei que é uma distopia fraca. Não me impeço, porém, de divagar: o que seria de um mundo sem livros, sem feiras, sem esse encontro anual em torno desse totem da civilização?

Sei que civilização não é sempre sinônimo de melhor dos mundos. Nós, os civilizados, temos sabido ser bárbaros e obscurantistas. Caminho entre os estandes, folheio livros ao acaso e me sinto tocando na alma de uma época que se contorce como uma imagem na água. Aperto meus olhos contra a luz do horário de verão. De repente, eu me vejo num futuro distante como poeira de página, pó da história, vestígio de uma cultura. Estou ao lado do meu amigo Décio Freitas, à sombra dos jacarandás floridos, sentados num banco verde. Falamos de livros. A noite cai como uma pátina sobre nós. Eu pergunto ao velho causeur:

– O que era a vida?

– Escrever e ler – ele me responde sorrindo.

*

Hoje, a partir 18h30, autografo na Feira do Livro de Porto Alegre “Diferença e repetição – o que é o imaginário (Sulina)”.

 

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