Eu sou um vira-lata assumido

Eu sou um vira-lata assumido

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Eu sou vira-lata.

Simone de Beauvoir disse que não se nasce mulher. Torna-se mulher.

Nasce-se vira-lata. Vira-lata legítimo, o que é uma forma absoluta de ilegitimidade, tem um problema: quanto mais se assume como vira-lata mais é acusado de estar se queixando por ser visto como vira-lata.

Vira-lata não tem paz. Vive levando chutes. Eu sou um vira-lata feliz. Sei que não tenho pedigree. Divirto-me com a minha vira-latice, embora, claro, ninguém acredite nisso. Sou um vira-lata mais feliz ainda depois que Paulo Coelho escreveu no seu twitter que nutre um “misterioso carinho por mim”. Acho que vou mudar de opinião sobre ele.

Vira-lata que se respeite lambe as botinas de quem lhe faz um afago.

Vira-lata não tem vida própria. Nem sobrenome construído tipo Gilberto Freyre de Casa Grande & Senzala ou Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas. Vira-lata só existe pela relação com os outros, os que possuem sobrenome cultural. Eu, por exemplo, só existo por ter brigado com Luis Fernando Verissimo. Sou uma nota de rodapé na biografia dele. Todo dia alguém me pergunta como foi a briga. Ninguém pergunta isso a ele. Quando vira-lata fala da sua condição de vira-lata fica mais vira-lata ainda, ou seja, mostra que, como todo vira-lata, é ressentido e invejoso.

O paradoxo do vira-lata é que, mesmo sendo ressentido, amargurado e invejoso, abana o rabo afavelmente para qualquer um, até para quem o chuta.

Vira-lata sempre tem uma boa resposta para dar.

Mas ela só lhe vem muito depois da ocasião de responder.

Escritor vira-lata, mesmo no trigésimo livro, sempre responde a duas perguntas: “É o seu primeiro livro?” e “onde posso encontrar o seu livro? Vira-lata não tem estratégia. Revela o que os marqueteiros o aconselhariam a esconder. Vira-lata sente prazer em ser vira-lata. Adora coçar a sua sarna. Vira-lata não se espanta nem sente inveja dos 8.582.226 seguidores que Paulo Coelho tinha no twitter às 8 horas do dia 3 de outubro de 2013. Agora já deve ter muito mais. Vira-lata sabe que é vira-lata quando se compara com outros da sua laia. Por exemplo, alguém com 298.628 seguidores. O sujeito sabe que é vira-lata quando coteja seus 14.231 inexplicáveis seguidores com esses quase 300 mil de um anônimo. Por que alguém segue um vira-lata?

O máximo da vira-latice é sentir inveja de alguém no twitter. É comparar-se com ele e perder. É citá-lo na condição de invejoso e perdedor.

Nada contra.

É só uma questão fria de números. Estou numa fase light. Talvez eu venha a ser budista (não bundista). Já escrevi no twitter, em retribuição ao afago, que, gostando ou não dele, Paulo Coelho é o grande escritor brasileiro da atualidade. O vira-lata tem uma função social importante. Ele existe para ser alvo. É nele que a comunidade deve descarregar sua cólera. Comparando-se a ele, cada um se sentirá melhor. Há quem me ache arrogante, metido, abusado, pernóstico e enfatuado. Eu sou apenas um vira-lata, um brasileiro sem eira nem beira, um silva, que leu Flaubert enquanto vendia melancias (eu, não Flaubert) e atreve-se a exclamar batendo no peito: o vira-lata sou eu. Au!

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