Farroupilhas, mitos e tradições inventadas

Farroupilhas, mitos e tradições inventadas

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Eu sou a favor dos mitos. Sei que toda sociedade precisa de rituais, baseados em mitos, que pontuem a passagem do tempo, deem sentido a vida, permitam festejar, vibrar em comum, como diz Michel Maffesoli, e sentir-se pertencendo a algo forte.

O mito está na base das identidades.

As tradições sempre aliam parte de verdade histórica e parte de mitologia.

A verdade pode até ser prejudicial nesses casos, descosturando o mito do passado necessário à vibração do presente.

O papel dos historiadores, porém, é dizer a verdade possível sem escondê-la atrás de falsas complexificações capazes de servir de álibi para os preconceitos do presente. Os mortos não podem mais governar os vivos. As invenções sobre o passado não pode m servir de justificativa para a imposições de princípios preconceituosos ao presente. O resto é absolutamente livre.

A sabedoria do povo dispensa o conhecimento dos historiadores na hora de fazer a festa. Ainda bem. A vida regida só pelos historiadores seria muita verdadeira e chata. O problema é que se costuma acreditar nos mitos contados. O gaúcho que comemora a revolução farroupilha de bombacha acredita que os homens da época da guerra civil usavam bombacha.

Mas não é verdade. A bombacha veio depois. Isso é só um exemplo.

Sobre a revolução farroupilha existem muitas narrativas inverídicas.

O comandante dos lanceiros negros, Teixeira Nunes, não morreu em Porongos.

A traição em Porongos não se assenta apenas no episódio de uma carta falsa forjada para desmoralizar Canabarro.

São muitos os detalhes para além dessa carta que embasam a traição.

Os negros farroupilhas foram entregues aos imperiais e levados para o Rio de Janeiro onde se tornaram escravos da nação.

Em História Regional da Infâmia, abordo detalhadamente cada um desses aspectos. O resto é simplismo de quem fala em complexidade como uma derradeira tentativa de esconder a verdade para fortalecer a ilusão.

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[O tenente Caldeira

Esteve no palácio, em Porto Alegre, anos antes de Porongos, quando Ulhoa Cintra, enviado de Bento Gonçalves, ouviu do presidente da província, Álvares Machado, que podia aceitar todas as demandas dos rebeldes, mas “os pretos cativos que estão servindo na revolução serão entregues ao Governo para lhes dar o destino conveniente”. Ouviu Ulhoa contestar: “Visto isso ficarão eles sendo escravos do Governo?” E Machado: “Não ficarão escravos do Governo, vão ser entregues ao Governo para serem empregados nas fazendas da Nação”. E Ulhoa: “Vem a ser a mesma coisa, sempre serão escravos”. Viu o presidente levantar e indicar a porta da rua. Ouvira também o presidente afirmar que os senhores de escravos que apresentassem documentos seriam indenizados.

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Em 5 de março de 1845, Caxias escreveu ao ministro da Guerra, Jerônimo Coelho: “Os escravos que eles ainda conservavam armados, foram entregues com suas armas, e seu número já não excede a 120 (...) Os escravos mandei adir aos corpos de Cavalaria de Linha, até seguirem para essa Corte na forma das ordens que recebi”. Recebeu e cumpriu. A questão dos escravos fora o ponto mais difícil para alcançar a paz. Em 7 de Maio de 1845, o ministro cobrou de Caxias o envio dos negros: “Sua Majestade o Imperador mandando renovar a ordem a Vossa Excelência designada na última parte do Aviso reservado do 1º de abril, determina (...) que Vossa Excelência na ocasião de remeter para esta Corte os escravos entregues pelos rebeldes, e quaisquer outros anteriormente prisioneiros, os faça acompanhar de relações nominais, tanto agora deles, como dos senhores, a quem pertencem”. Em 1º de agosto de 1845, o ministro da Marinha, Cavalcanti de Albuquerque, especificou: “Deverão ser remetidos para esta Corte tanto os escravos que forem aí pagos como os que devem ser aqui avaliados, a fim de se lhes dar o conveniente destino” (Avisos de Guerra, AHRGS. Bl. 049).

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Em 25 de agosto de 1845, porém, chegaram ao Rio de Janeiro 77 negros e 19 inválidos provenientes do Rio Grande, conforme noticiaram o Diário do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio. Viajaram numa barca chamada Triumpho da Inveja. Esses recortes de jornal foram agora localizados por Fernando Quadrado Leite. Quem poderia invejá-los? Que teriam sentido ao desembarcar? Houve fugas antes e depois da partida. Foi preciso amarrá-los antes do embarque.

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Antônio Vicente da Fontoura diz que Teixeira Nunes, o comandante dos lanceiros negros foi “morto como um bravo em combate contra forças superiores de Francisco Pedro de Abreu, no Arroio Grande (20 de novembro de 1844)”. Na versão de Alfredo Varela, na sua “História da Grande Revolução” (vol. 6, p. 258-259), nada disso está correto. Nem a data. Teixeira Nunes “devia arrecadar impostos, e fornecer do necessário, a tropa, no distrito do Arroio Grande (...) Notando estar agora inteiramente cortado do exército, buscou reunir as suas partidas volantes para distanciar-se (...) Efetuada a incorporação, e já cobradas as taxas na aldeia supra e costa do Chasqueiro, movia-se o contingente revolucionário em franco recuo para noroeste, quando a sua desfortuna o pôs nas unhas de um dos mais bravios filhotes do possante condor, ávido de substância farrapa, que voava e revoava, nesse departamento da República. Acampava, a 26, perto de Canudos, e Fidelis, o indicado subalterno e bom discípulo, caiu de improviso sobre os retirantes. (...) Assistiu-se aí à exata miniatura do que se vira em Porongos: total e ruinoso destroço. Sucumbiram muitos sob o ferro legalista, divulgando a apologia dos Abreus que, entre os mortos na surpresa, se contara o nobre Teixeira, ilustre entre os mais ilustres pugilistas do áureo decênio. Mais uma inverdade escandalosa, disseminada pela turba dos vencedores. É falso! ‘Prisioneiro, foi assassinado’".

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Canabarro, conforme narra o tenente Caldeira, foi advertido da presença dos imperiais nas proximidades do seu acampamento em Porongos. Foram muitos os sinais, indícios, encontro de vanguardas e um aviso muito direito.

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"Francisco Pedro, na véspera do ataque, acampou nos fundos do potreiro da estância da Dona Manoela, irmã do General Neto, sobre a margem esquerda dum galho de arroio Candiotinha que recebe águas da serra da Veleda. Um peão da dita estância foi recolher animais no campo e falou com os cavalariços que cuidavam a cavalaria da força que estava acampada e por eles soube que era Moringue que ali estava. Dona Manoela sabia que Canabarro estava acampado nos Porongos e mandou chamar o velho Pereira que morava no Candiotinha, o qual atendeu ao seu chamado e pediu-lhe para ir ao acampamento do Canabarro dizer ao seu irmão que Moringue estava acampado no referido lugar. Pereira foi à casa mudar de cavalo e roupa e depois marchou para o acampamento e deu o recado a Neto, que sua irmã lhe mandava. Neto depois de ouvi-lo disse: ‘Vá dar a mesma notícia a Canabarro’. Pereira foi à barraca de Canabarro e, aproximando-se respeitosamente a ele, transmitiu-lhe a referida notícia. Canabarro perguntou a Pereira: ‘Você viu o Moringue?’ Pereira respondeu negativamente. Canabarro: “E então, como é que diz que é o Moringue?”

“Pereira disse como sabia. Canabarro: ‘Você não está mentindo?’ Pereira era homem sério e ficou desapontado. Canabarro perguntou-lhe de que lado era o vento. Pereira disse de que lado estava, então Canabarro disse: ‘O Moringue sentindo a minha catinga aqui não vem. Marche para a sua casa e não ande espalhando esta notícia aterradora aqui no acampamento’. Canabarro deu ordem para chegar a cavalhada da reserva à frente do acampamento, para mudarem de cavalos (os cavalos chegaram porém não foram pegos). Também deu ordem ao quartel-mestre para recolher o cartuchame da infantaria e carregasse em cargueiros porque estavam se estragando nas patronas; para serem distribuídos quando aparecesse inimigo. Neto estava acampado em mau lugar, por isso mudou de acampamento depois que teve aviso de sua irmã. Os artilheiros estavam acampados no lombo de uma estreita coxilha que está situada entre o arroio dos Porongos e uma vertente que nasce no cerro do mesmo nome”. Antes de Canabarro acampar nos Porongos, mandou pôr as duas peças que tinha em um lagoão que está no fundo do campo de João Lucas de Oliveira, sobre a margem direita do Candiota Grande, pouco acima da barra do arroio do Tigre. João Antônio estava acampado à margem esquerda do arroio dos Porongos em bom campo. A infantaria desarmada estava na margem direita do dito arroio. Na retaguarda da barraca de Canabarro tinha um passo que por ele passava-se para o acampamento de João Antônio” .

“Moringue marchou do Candiotinha pelas quatro horas da tarde, mais ou menos, lançando fogo no campo e na noite daquele dia estendeu a cavalaria em linha na frente do acampamento de Canabarro e mandou tocar a alvorada e, antes de mandar um esquadrão de cavalaria entrar pela retaguarda da infeliz infantaria, deu ordem que não matassem os brancos e sim os mulatos, negros e índios. Canabarro, ouvindo o toque de alvorada, montou a cavalo com o seu Estado-maior e passou o arroio do dito passo e apresentou-se à frente da força de João Antônio, o qual estava furioso por ver a matança que o inimigo fazia em seus companheiros de armas sem socorrê-los por Canabarro não consentir”. Canabarro ficou naquele dia nos campos dos Porongos e pernoitou, e no outro dia marchou serenamente para o campo do contrato, ficando Neto derrotado completamente por causa do péssimo terreno escolhido (a propósito) por Canabarro."

Assim foram traídos os negros.

 

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