Filmes que mostram nossas contradições

Filmes que mostram nossas contradições

Obras modestas e reveladoras

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  Tento ir ao cinema uma vez por semana. A Netflix não sacia minha fome de sala escura, concentração total e programa fora de casa. Gosto de encontrar as pessoas de sempre no Guion, na Mário Quintana ou no Cinebancários. Mas, claro, vamos em outras salas. Três ótimos filmes que vi em 2019 são dois documentários e um drama inspirado numa história acontecida, quase um documentário: “Santiago, Itália”, “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” e “Cézanne e eu”. Vejamos.

      Em “Santiago, Itália”, documentário de Nanni Moretti, sobre chilenos que se refugiaram na embaixada italiana, em Santiago, depois do golpe de Pinochet, o torturador, interrogado na prisão pelo cineasta, exige imparcialidade. É um momento singular. O assassino, condenado por seus crimes, reclama ética e isenção. O entrevistador responde com uma clareza fulminante: “Eu não sou imparcial”. Eis tudo: a imparcialidade como último refúgio da infâmia sem constrangimento.

      “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”, de Marcelo Gomes, é um documentário sobre a cidade de Toritama, em Pernambuco, onde se vive da produção de jeans. As pessoas trabalham quase como em fábricas do século XIX mesmo quando transformam suas casas em oficinas improvisadas. Um bolso de jeans vale dez centavos. Até o almoço é na linha de produção para não se perder tempo. Mesmo assim, o discurso dominante é do da liberdade. Cada um se diz dono do seu tempo. Só o carnaval é que liberta. É quando se vende tudo, até a geladeira, para ir em busca do mar, da festa e de alguns dias sem trabalho. Cada um vende cada minuto da vida e compra a ideia de que está livre sem as amarras do cartão-ponto e sem a proteção de qualquer direito trabalhista. Toritama é o paraíso da terceirização como utopia fabril.

      “Cézanne e eu”, de Danièle Thompson, sofre muitas críticas pela sua suposta superficialidade e falta de criatividade. Paul Cézanne é o filho de família rica, egoísta, grosseiro, ressentido e prepotente, que esculpe sem concessões. Quer arte pela arte e não se importa com mais nada. Zola vem de família pobre. É suave, tímido, obcecado por agradar. Será acusado de escrever apenas para vender. Numa cena, Zola diz a Cézanne que a literatura esqueceu os trabalhadores. Apresenta o seu projeto de uma literatura para esses excluídos. A aposta é boa. Zola vai imortalizar os que trabalham e imortalizar-se com o seu trabalho.

      Filmes e livros para mim são como lavras onde é preciso garimpar achados: o torturador que cobra imparcialidade e ética; o entrevistador que assume sua subjetividade e o seu lado; o semiescravizado moderno que comemora a sua liberdade e declara a sua felicidade enquanto repete infinitamente o mesmo gesto; o quase escravizado que vende tudo para ser realmente livre durante uma semana de carnaval; o escritor que percebe as exclusões do seu tempo e encontra o ponto certo onde ancorar a sua ambição literária; o artista que empenha a sua vida na produção de uma obra que só existirá para o mundo quando ele estiver morto. 


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