Força das estruturas

Força das estruturas

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 Fiz o curso de Pierre Bourdieu no Colégio da França. Ele falava baixo. Mas as suas ideias repercutiam. Jean Baudrillard ironizava o pensamento de Bourdieu: “A gente aprende com ele que é melhor ser jovem rico e bonito do que velho, pobre e feio”, dizia. Michel Maffesoli e Dominique Wolton também brincam assim. Não deixa de ser verdade. Pierre Bourdieu, no entanto, tem a sua tribo. É venerado por muitos. Os seus críticos falam até em pensamento “bourdivino”. Parte do que ele sustentou me convence. Uma vez, um aluno reclamou que havia pouco espaço para o indivíduo na obra de Bourdieu. Ele riu na lata:

– O indivíduo é uma ilusão ou uma vaidade pequeno-burguesa – disse.

Uns riram. Outros se aborreceram. Eu ri. Acredito cada vez mais na força das estruturas. Elas nos moem. Não gosto de fulano, mas ele é tão famoso que sou obrigado a falar dele. Em sociedade cada um de nós precisa medir a sua força com a força dos outros. Salvo para os indivíduos extraordinários, a força individual de cada um é pequena. Sobreviver implica compor, ceder, negociar, fazer concessões, abdicar. Baudrillard não discordava disso. Apenas achava um tanto clichê:

– A sabedoria popular chama isso de engolir sapos – ironizava.

Para quem possa não saber, Pierre Bourdieu foi um dos maiores sociólogos do século XX. Para alguns, o maior. Ele foi uma máquina de produzir ou consolidar conceitos. A essência da sua visão de mundo parece estar contida na sua definição de “campo”: “Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias”. A vida é conflito, luta, disputa.

Se estou num “campo”, não posso ignorar as suas regras, troféus, valores, procedimentos, conceitos e até heróis. Cada “campo” tem os seus dominantes. Normalmente se entra na condição de dominado. Um indivíduo não impõe a sua vontade a um “espaço social estruturado”, anterior a ele. O futebol é boa metáfora para pensar a força das estruturas. Cristiano Ronaldo é um indivíduo excepcional. Ele tem, nos termos de Bourdieu”, “capital”. O “capital” – talento, prestígio, dinheiro, poder, influência – determina a lugar de cada um e suas estratégias em relações aos concorrentes. Mesmo assim, CR7 atua dentro das regras do seu “campo”. Maradona teve tanto “capital” que burlou a regra e fez um gol com a mão. Hoje, pararia no árbitro de vídeo.

O indivíduo que ignora as regras do seu “campo” e tenta se comportar como dominante quando não passa de um reles dominado, entra em parafuso. Fica falando sozinho. Na visão de Pierre Bourdieu, a competição predomina sobre a cooperação. Estamos mais para lobos do que para abelhas. Só que constantemente nos tomamos por machos alfas quando somos apenas operários do sistema. Bourdieu opinava sobre tudo. Comprou briga com o campo jornalístico com provocações como esta: “Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; e veem de certa maneira as coisas que veem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado”. Ferroada.

Os óculos dos profissionais de mídia, segundo Bourdieu, ampliam as supostas novidades: “Os jornalistas, grosso modo, interessam-se pelo excepcional, pelo que é excepcional para eles. O que pode ser banal para outros poderá ser extraordinário para eles ou ao contrário. Eles se interessam pelo extraordinário, pelo que rompe com o ordinário, pelo que não é cotidiano – os jornais cotidianos devem oferecer cotidianamente o extraordinário”. O treinador dentista da Islândia é um fato excepcional para os jornalistas esportivos, mas certamente banal para os islandeses. A política é campo por excelência. José Stédile, presidente do PSB-RS, mediu forças com Beto Albuquerque. José Fortunati entrou no PSB para ser candidato ao senado. Beto avisou que não rolaria. São duas vagas, mas os partidos, por estratégia, usam uma e deixam a outra para aliados. Beto era dominante no campo.Ganhou. Stédile negociou, cedeu, recou, compôs.

Fortunati perdeu. O “capital” que detém não foi suficiente para tirar Beto do jogo. Dominantes passam pelo dissabor de ter de mostrar vez ou outra a força que possuem contra dominados desafiantes. Eduardo Cunha, outro que se iludiu com seus poderes, teve muito “capital”. Usou-o para derrubar Dilma Rousseff e instalar Michel Temer no Planalto. Descobriu a relatividade da sua força ao parar na cadeia. A força das estruturas não perdoa. Uma estratégia de competição do dominado é a cooperação com dominantes para acumular “capital”. Moral da história: se o dominado erra o bote, vira poeira no sapato do dominante. O “campo” é uma arena. Alguns se retiram quando compreendem que jamais virarão o jogo. Outros cercam um campinho e o administram com mão de ferro, sorriso afável e acordos ocasionais de cavalheiros.

 

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