Gauchismo musical machista

Gauchismo musical machista

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 Uma reportagem no jornal O Globo me fez pensar numa coisa que há muito não me ocupava a minha mente superior sobrecarregada de questões universais para resolver todo dia: o machismo de certas letras da música tradicionalista gaúcha. Ouvinte alternadamente de José Mendes e de Beethoven, tenho andado nos últimos tempos muito conectado na MPB. Estou numa fase Nana Caymmi. De repente, salto para Mercedes Sosa. Ainda não decifrei o critério das minhas escolhas. Sigo meus impulsos.

Assim como sertanejo recente não me embala, o gauchismo atual não me encanta. Parei no tempo. Sou gaúcho da infância, de Teixeirinha e Gildo de Freitas. Mas ainda tem composição que não se constrange em falar da mulher amada nestes termos altamente poéticos e respeitosos: “Não chora/Me desculpe se eu te esfolei/Com as minhas esporas". Em caso de separação, o método de reconciliação é expedito: "E se a china for embora/Eu faço voltar à laço". A mulher é a égua, a potranca, a vaca. Autores explicam que é só uma maneira bem nossa de falar. Como diria o carioca maneiro, fala sério, mermão!

Na boa, contem outra.

Não dá nem para aplicar o golpe do relativismo dizendo que são coisas de época. Muitas letras são recentes ou atuais. Fiquei de queixo caído ao tomar conhecimento desse primor de humorismo do grupo Tchê Garotos na aurora do terceiro milênio: "Quanto mais eu passo o laço/Muito mais ela me adora/Mas o efeito do remédio que eu dei/Foi melhor do que pensei/Ela faz o que eu quiser/ Lava roupa, lava prato". O machismo tente a adotar as mesmas justificativas furadas do racismo em estádio de futebol: chamar de macaco em jogo seria só uma brincadeira. Comparar com égua não passaria de uma expressão campeira. Uma inocente e romântica forma de ser carinhoso com a mulher amada.

Durante muito tempo o humor se contentou em fazer piada de gay, negro e judeu. Precisa agora ser mais criativo. Os compositores gauchescos também terão de se atualizar. Os CTGs devem funcionar como escolas de uma nova sensibilidade e de um novo imaginário. Esse negócio de passar espora em égua, mesmo sendo o animal, também já era.  Faz parte de uma mitologia primitiva racionalmente superada. A homofobia corre solta em algumas letras pretensamente cheias de bom humor: “Xou água que coisa seria este mundo ta mudando/É o bugio roncando grosso e o xiru desmunhecando/A confusão ta formada na base do vai ou racha/Tem guasca que adora saia, se escondendo da bombacha”.

O politicamente correto é uma chatice? Não se pode brincar mais? Não, não pode mesmo. A fase da humilhação incontestável terminou. Ainda bem que mulheres ligadas ao tradicionalismo gaudério resolveram botar a boca no mundo. Insultos, claro, estão pipocando. A grossura preconceituosa não suporta ser contestada. O cancioneiro gauchesco tem músicas maravilhosas. Não precisa se alimentar de estupidez. Ah, aqueles que quiserem me chamar de “viado” e de “comunista” sintam-se à vontade. Apenas confirmarão o que acabo de dizer. Sou mais Gilberto Gil: “Vivi a ilusão de que ser homem bastaria/Que o mundo masculino tudo me daria”. Esse é de faca na bota. Bah!

 

 

 

 

 

 

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