Getúlio, o ditador que dava direitos trabalhistas

Getúlio, o ditador que dava direitos trabalhistas

Direitos que a democracia tira

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Getúlio Vargas matou-se em 24 de agosto de 1954, há 65 anos.

*

No quarto, Getúlio mostra a chave do cofre, que guarda no bolso, a Alzira e Benjamim. Em seguida, Ernâni traz a minuta da nota para que Alzira a mostre ao pai. Ciente de que o texto já foi aprovado pelos outros, aceita-a passivamente e reclama que já está dormindo, não quer mais ser incomodado. Minutos depois, as rádios já transmitem a notícia do licenciamento: “Deliberou o presidente Vargas com integral solidariedade dos seus ministros entrar em licença, passando o governo ao seu substituto legal, desde que seja mantida a ordem, respeitados os poderes constituídos e honrados os compromissos solenemente assumidos pelas Forças Armadas perante a Nação pelos oficiais generais das nossas Forças Armadas”. De casa, Paulo Amato telefona ao seu contato com PJ para comemorar o êxito da longa operação. No apartamento de Café Filho, que veste jovialmente uma calça creme e, enfim, sorri sem constrangimentos, estouram os primeiros champanhas. Antes do amanhecer, Afonso Arinos, Carlos Lacerda, cercado de admiradores, e Eduardo Gomes também participarão de uma festa.

Não resta mais nada. Lourival Fontes insiste para que José Américo, Tancredo Neves e Osvaldo Aranha não se descuidem e salvem a vida do presidente. Há um cheiro de tragédia no ar e não se resume ao patético de um licenciamento forjado para valer como renúncia. Zé Américo concorda, repete que acaba de dizer o mesmo a Osvaldo, mas se interrompe para cumprimentar Zenóbio: “Sem a sua postura, o presidente já teria sido deposto desde o segundo dia da crise. Disse isso a ele mesmo”. Lutero faz um gesto estranho com a cabeça e afasta-se para não ouvir mais. Retiram-se quase todos que nada mais têm para fazer no palácio. Na rua do Catete, apesar de ser fim de noite, uma multidão grita “Adeus, Vargas!”.

Já se pode sentir o ar frio da manhã. Lutero conversa com a mãe e com a prima Maria, num sofá do terceiro andar. Pede ao Doutor Flávio Mello que meça a pressão de Dona Darcy. O médico oferece-lhe um calmante e ela se retira, acompanhada por Adalgiza, para os seus aposentos. Caiado, Lúcio Meira e Fittipaldi tomam providências de segurança, mais que de resistência. Já não há razão para resistir. Nas proximidades do Senado e da Câmara, caminhões, lotados de soldados armados, estacionam. No seu quarto, Getúlio fecha os olhos e tenta dormir. Uma massa de vultos confusos e de palavras entrecruzadas chicoteia-lhe a mente como uma saraivada de balas. Pensa no “grande gesto” e vê-se assinando a lei 2004, em 3 de outubro de 1953, de criação da Petrobrás, “o petróleo é nosso”. A simples evocação de um 3 de outubro o joga para muito mais atrás e o devolve para o dia em que tudo começou, 3 de outubro de 1930.

Não rememora uma linha de tempo. Retalha fragmentos numa balbúrdia de emoções. Numa cena, a Junta Governativa, formada pelos generais Tasso Fragoso e Mena Barreto e pelo almirante Isaías Noronha, lhe dá posse no Guanabara. Noutra, garoa sobre Porto Alegre, embora seja primavera, e ele escreve no seu diário enquanto espera a revolução. Noutra ainda, troca telegramas com João Neves. Explica-lhe por que não deve assumir o governo do Rio Grande: “Assumindo o governo, ficaria impossibilitado, desde logo, para exercer o mandato de deputado”. Temia o fracasso do movimento. Já o amigo respondia-lhe, melindrado, “embarcarei como simples soldado”, “apenas por decoro renunciarei imediatamente à vice-presidência”. Nada o convenceria do erro de interpretação, “não compreendeste o intuito da minha carta”. Não, não compreendia, “desejoso não criar embaraço nossa grande causa, limito-me enviar-lhe, pelo portador da carta de ontem, ofício de renúncia à vice-presidência”…

E já lhe vem a conspiração em Porto Alegre, a evasão de Prestes, a adesão de Góis, as articulações incansáveis de Osvaldo e João Neves, os recuos do velho Borges, a consolidação da aliança com Minas e Paraíba, João Pessoa lutando com as oligarquias do sertão, enfrentando João Suassuna, renovando a nominata da chapa do seu partido, embora não degolasse um primo, para as eleições federais e ganhando o ódio dos coronéis, mesmo dos seus aliados, como José Pereira, o homem que vai declarar Princesa, flor do sertão, território livre, com hino e Constituição. Pensa em João Pessoa mandando reprimir conflitos e a sua polícia prendendo até mulheres da família Dantas, depois invadindo o escritório do próprio João Dantas e recolhendo armas e sua correspondência íntima, cartas fogosas trocadas com uma linda poetisa, parte delas, em seguida, publicada no diário oficial do Estado, A União. Não precisava mais nada. Cherchez la femme…

Vem-lhe à mente o sertanejo João Dantas lendo por cima do ombro de um homem, já em Recife, mais uma carta da sua amada numa edição de A União. Depois, na Confeitaria Glória, Dantas atirando em João Pessoa e este caindo, tendo no bolso um bracelete e preparando-se para encontrar uma bela cantora na descida de um navio. Pensa no horror, deflagrada a Revolução, da morte de Dantas, junto com o cunhado, na prisão cercada pelo povo inflamado. Pensa na versão oficial, assassinato seguido de suicídio, e nos bilhetes dos dois: “Mato-me de consciência tranqüila”, esquece um pedaço, “meu brio não suporta humilhações”, não se lembra mais do outro. Lembra-se de que, transportado ao Rio de Janeiro, o corpo de João Pessoa transformou-se num emblema da Revolução.

Lembra-se da sua própria chegada ao Rio de Janeiro, aclamado, carregado, vitorioso. Lembra-se de, na posse, ter dito algo assim: “O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no Sul, Centro e Norte do País e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência como nacionalidade. Em toda nossa histórica política, não há, sob este aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas”. Assombra-se com os nacos de memória que lhe saltam inteiros, arrancados do passado como frutos embalsamados. Lembra-se de ter prometido, na Esplanada do Castelo, em nome da Aliança Liberal, anistia e liberdade de pensamento; legislação eleitoral, voto secreto, leis trabalhistas e sociais; criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, industrialização do país, proteção aos produtos e interesses nacionais.

Fatiga-se. Não dorme. Vem-lhe mais uma lufada do que num dia de novembro de 1930 anotou no diário: “Quantas vezes desejei a morte como solução de vida. E, afinal, depois de humilhar-me e quase suplicar para que os outros nada sofressem, sentindo que tudo era inútil, decidi-me pela revolução, eu, o mais pacífico dos homens, decidido a morrer. E venci, vencemos todos, triunfou a Revolução! Não permitiram que o povo se manifestasse para votar, e inverteram-se as cenas. Em vez de Júlio Prestes sair dos Campos Elísios para ocupar o Catete, entre as cerimônias oficiais e o cortejo dos bajuladores, eu entrei de botas e esporas nos Campos Elísios, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete com poderes ditatoriais. Washington Luís provocou a tormenta, e esta o abateu”.

Não, não pode estar lembrando, vinte e quatro anos depois, linha a linha o que se perdeu em páginas de velhos cadernos e, a favor ou contra, pode referir-se, agora, a ele mesmo, de outro jeito, saindo do Catete, abatido por uma tempestade que não provocou, sem esporas nem farda, escolhido pelo povo e com poderes democráticos. “Dizem que destino é cego. Deve haver alguém que o guie pela mão!”, repete-se, como um quarto de século antes. Aos poucos, perde a clareza e o fio da memória. Lembra-se da incompreensão dos amigos, dos manifestos gaúchos – o “heptálogo”, falava-se assim, da Frente Única –, lembra-se da oposição de Flores, de Borges, enfim, ele mesmo, o venerando e venerável Borges, de armas na mão, do lado dos paulistas, de João Neves esporeando-o com “O Acuso”, dos golpes e contragolpes, da humilhação de 1945, a inesquecível humilhação de 1945. Passa de 6 horas da manhã quando Bejo o sacode lentamente, mas com firmeza. Sobressalta-se. Desperta, não do sono, mas de um nevoeiro:

  • Que há? Por que não me deixam dormir?
  • Vieram me buscar para depor no Galeão?
  • Quem veio?
  • O major Lameirão mandou a intimação ao Zenóbio. Estão aí o general Jandir Galvão e o meu sobrinho Umbelino para me acompanhar?
  • Que têm o Galvão e o Umbelino com isso?
  • Parece que o Zenóbio se indignou com a audácia do Adil e pediu para duas pessoas de nossa confiança me acompanharem.
  • Não, não vai. Se querem te ouvir, que venham aqui, no Catete.
  • Getúlio, depois será a tua vez!

A festa de Café Filho e dos seus amigos continua. Bejo encontra a cunhada no corredor e confessa-lhe que terá de depor no Galeão. Chora. Darcy o abraça com carinho, como uma mãe, com a ternura que sempre teve pelo caçula dos Vargas. Lutero aproxima-se, tem também os olhos vermelhos e inchados. “Estou com medo pelo papai”, diz. “Calma, guri, não vai acontecer nada”, exclama Bejo. Darcy acaricia o rosto de Lutero. A intuição do fim a leva a pensar no começo: Lutero de uniforme do Colégio Militar de Porto Alegre, em 3 de outubro de 1930, resmungando contra os homens que haviam invadido o seu quarto no Piratini. Ela, nervosa, mandado os filhos para a casa de uns amigos, afastando-os do perigo das armas.

Não retém mais as lágrimas. Chora pelo que foram, pelo que são, pelo que o marido ainda poderia fazer pelo Brasil. Volta para o seu quarto. Em seguida, já de óculos escuros, busca o alívio da brisa fria numa janela voltada para o parque do Catete. Sabe que a grande caminhada do poder terminou e que o peito do homem da sua vida deve estar dilacerado. No Ministério da Guerra, Zenóbio prepara-se para receber os generais e oficializar a notícia do licenciamento do presidente da República.

De Minas Gerais, Juscelino telefona para prestar solidariedade. Mas é tarde para incomodar Getúlio. Nos dias anteriores, soubera vagamente dos recados de Góis o alertando para não se deixar apanhar em armadilhas. Mergulhado, outra vez, em seus pensamentos, Getúlio revê os rostos jovens de Góis Monteiro, Osvaldo Aranha, João Neves, Zé Américo, João Pessoa. A mente dá um corte brusco e já é o rosto de menina de Darcy que lhe aparece numa manhã de São Borja. Alzira entra no quarto e faz barulho. Que anda fazendo ali, ainda, a rapariguinha?

  • Ainda não foste dormir?
  • Durmo quando eu quiser.
  • Pois então, sua malcriada, vá embora que eu vou continuar dormindo, responde ele, rindo.
  • Fiz uma travessura. Falei com alguns militares nossos amigos. Ainda podemos reagir.
  • Não adianta mais. O Zenóbio já aceitou ser ministro do Café.

Na frente do Catete, com o nascer do dia, aumenta o número de manifestantes. Arinos espia por uma janela e espanta-se com a fúria da multidão. Esperam, certamente, a saída humilhante do presidente para apupá-lo com uma vaia imerecida. Não, Getúlio não era o “barbado”, não era Washington Luís, não era o presidente deposto, descendo, ao cair da noite de 24 de outubro de 1930, também um 24, as escadas do Guanabara, preso, humilhado, sob as vaias da população, sob os gritos de “dá nele, dá nele”.

No restaurante Lamas, no Largo do Machado, Paulo Amato consulta o seu relógio Eterna-Matic com calendário, uma moda luxuosa, toma um café puro e forte, com pão e manteiga, folheia um jornal e escolhe um programa cultural para a noite. Pretende, enfim, relaxar. Bom seria um rebolado da “pornofônica” Dercy Gonçalves”. Há de tudo para o dia, até uma exposição do pintor Iberê Camargo, que conhece pessoalmente, mas não lhe interessa. Oscila entre um espetáculo musical de Silveira Sampaio e Guio de Moraes, na Beguin do Hotel Glória, “No País dos Cadillacs”, e o filme “Como Agarrar um Milionário”, embora outros títulos, como “História Proibida”, no Serrador, e “Anjo do Mal”, dirigido por Samuel Füller, o façam sorrir ironicamente. Acabou, pensa. Num canto de página, lê que, três dias antes, nascera Tereza Cristina, a neta do ator Procópio Ferreira, filha de Bibi. Por que lhe chama atenção aquilo? Não sabe. A memória é um arquivo morto, pensa.

Generais reunidos, às 7 horas, Zenóbio da Costa, exausto, sem dormir, mas já bem escanhoado e com os olhos faiscando, jura pela sua honra sempre ter sido leal ao presidente e à sua função e ordena ao major Pedro Cavalcanti que proceda à leitura da nota de licenciamento redigida após a reunião ministerial da noite passada. Estampa-se no rosto de cada um a decepção. Juarez Távora baixa os olhos. Fiúza de Castro sacode a cabeça, inconformado.

  • Licença provisória?, questiona, grosseiramente.
  • Como?, ganha tempo Zenóbio.
  • Que vai ser depois?, insiste Fiúza.
  • A licença do presidente é definitiva, pronto, diz Zenóbio, num impulso.
  • Definitiva?
  • Foi o que ouvi dos ministros depois da reunião.
  • Ah, então a coisa muda de figura.
  • A ordem será mantida?
  • O senhor tem a nossa garantia, ministro, de que a ordem será mantida. Aproveito para louvar e enaltecer a sua coragem, a sua bravura, a sua honra e a sua equilibrada condução dos problemas num período tão delicado da vida da nossa pátria, proclama Fiúza.

Estranhamente abatido, Juarez Távora faz um gesto com a mão direita, parece que vai pedir para falar. Todos esperam que se pronuncie. Alto, tez bronzeada, com sua “cara de medalha”, impõe respeito desde antes da Revolução de 1930, quando era simples capitão. Ninguém esquecia a sua fuga da fortaleza de Santa Cruz, agarrado numa corda de lençóis, para continuar a luta contra as oligarquias. Depois de alguns segundos de hesitação, deixa a mão robusta recair sobre o colo e permanece em silêncio. Descontrai-se a atmosfera e todos se cumprimentam pelo fim da crise.

Em poucos minutos repercute no Catete mal-amanhecido a declaração de Zenóbio aos generais. Há, no palácio, uma atmosfera de casa abandonada, de tapera, ou de prédio público depois de uma catástrofe natural. O ex-chefe de Polícia, general Âncora, entra esbaforido na sala de Caiado de Castro, onde estão, um tanto confusos, Tancredo Neves e Bejo, e despeja:

  • O Zenóbio disse que a licença é definitiva.
  • Como definitiva?, espanta-se Tancredo.
  • Definitiva, definitiva…
  • Mas se é uma licença!
  • Agora é uma renúncia, murmura Âncora.

Descontrolado, Bejo corre para o terceiro piso. Vai num trote de homem da sua idade, segurando o coração, as tripas e a barriga. Já não é um menino. Sente o físico pesar-lhe até alcançar o elevador. Entra no quarto e encontra Getúlio acordado.

  • O mulato disse aos generais que a licença é definitiva.
  • Então quer dizer que estou deposto?
  • Não sei se estás deposto, mas sei que é o fim.
  • Por quê? Quem é o culpado?
  • Nós.
  • Que estás dizendo?
  • Foi o Lutero, Getúlio.
  • Hein?
  • Fui eu.
  • Que estás dizendo? Cala-te.
  • Fomos nós. Todos nós.
  • Nunca mais repita isso. Eu sei que não foram vocês. Eu sei quem foi. Sei quem e como me levaram a isto.
  • Sabe?
  • Sei. Agora vai lá tirar a limpo isso de licença definitiva.

Novamente sozinho, com o rosto entre as mãos, numa atitude que não lhe é peculiar, Getúlio pensa no “grande gesto”. Passa-se uma fatia de tempo que lhe parece interminável. Toca a campainha. O camareiro e barbeiro Pedro Barbosa entra imediatamente. “Me chame o Benjamim, Seu Barbosa”. O homem sai. Getúlio ainda se recosta por alguns minutos. Às 8h10min, sai do quarto, só de pijama, para espanto dos que ali se acham, tão inusitada é a cena, atravessa o corredor e vai até o gabinete do terceiro piso. Assusta o mordomo Zarattini, sentado à porta da sala. Cumprimenta-o com um leve oscilar da cabeça. Avista Alzira falando ao telefone. Enxerga Tércio, dormindo em outra poltrona, e lembra-se de ter esquecido de mandá-lo embora. No segundo pavimento, Lourival junta livros e caixas de documentos e os carrega para o carro, no pátio do palácio. Vai guardá-los na casa do seu chefe de gabinete, José Sette Camara. Getúlio volta para o quarto, pergunta, rispidamente, o que Barbosa ainda faz ali, controla-se, ao perceber a mágoa nos olhos do homem simples, e pede-lhe que se retire, quer descansar mais um pouco.

Deita-se. Vê-se no trem subindo de Porto Alegre para São Paulo, ao encontro da revolução, resfolegando rumo à batalha de Itararé, a batalha que não houve, o confronto vencido sem luta, onde percebeu, pela primeira vez, que o adversário recuava para nunca mais desistir de contra-atacar pelos flancos. Vê-se, em Porto Alegre, fardado, declarando, solene, patético, “Rio Grande, de pé pelo Brasil. Não desmentirá teu destino heróico”. Vê-se, de novo, diante de Darcy, em 1950, ouvindo-a dizer, tristonha, que nada a convencia da necessidade de que ele voltasse ao Catete. Pressentia o desastre ou, simplesmente, queria vê-lo descansar.

Vem-lhe, então, à mente a frase anotada vinte e quatro anos antes, numa tarde de primavera, 3 de outubro de 1930, no seu diário de revolucionário com a faixa de presidente de Estado: “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”. Agosto…, pensa. Já comi muita carne, pensa. Segura o revólver, calibre 32, cabo de madrepérola, leva-o dois dedos abaixo do mamelão esquerdo. Chegara num 24. Partiria num 24. Respira fundo, muito fundo. Se não posso impedir o golpe como homem, eu o farei como cadáver, pensa. A mão treme-lhe por um segundo, antes de petrificar-se numa decisão sem volta. É o último lance. Dispara. Um tiro no coração! Abre-se um orifício no pijama listrado.

São 8h35min de 24 de agosto de 1954, dia de São Bartolomeu e do nascimento, em 1918, de Getulinho. Em 29 de outubro de 1945, o mesmo dia, nove anos antes, da morte da sua mãe, fora deposto por seus generais. Na sua longa carreira, vencera duas eleições diretas: a primeira, em 1930, fora invalidada pela fraude e revalidada pela força das armas; a segunda, em 1950, sofrera todas as tentativas possíveis de fraude, com a patética discussão sobre a falta de maioria absoluta, e terminava, agora, pela força de uma só arma. Na rua do Catete, as pessoas, subitamente despertas, caem de joelhos e choram pelo presidente “assassinado”.

(fragmentos de Getúlio, Record, 2004).


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