Getúlio sempre flertou com o suicídio

Getúlio sempre flertou com o suicídio

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Qualquer historiador sabe que Getúlio Vargas sempre teve uma tentação suicida.

Não é novidade.

Está no Diário de Vargas começado em 3 de outubro de 1930.

Naquela tarde de primavera,  em Porto Alegre, esperando eclodir a sua revolução, cravou na pedra morna do papel uma frase para entrar na história: “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”.

*

Muitos anos depois, numa conversa com Góis Monteiro, ele relembrou a segunda vez em que pensara em se matar.

– Em 1932, se o palácio tivesse sido tomado pelos paulistas, você teria se matado?

– De onde tirou isso?, tergiversou o presidente.

– Quando fui ao Guanabara, a pedido do Osvaldo Aranha, para dizer que estávamos em condições de resistir aos delírios do Bertoldo Kingler, do Euclides Figueiredo e do Isodoro Dias Lopes, vi no seu bolso o cabo de madrepérola de um revólver e, sobre a mesa, um envelope onde estava escrito “à nação brasileira”.

– Sempre tive comigo uma certeza, a de que não seria levado por nenhum homem de saia. Não sou dos que esperam o cardeal.

– O fim de Washington Luís nunca saiu da sua cabeça?

– Isso me marcou bem mais do que os cavalos amarrados pelos gaúchos no obelisco da Avenida Rio Branco, brincou Getúlio. – A morte pode ser o último dom de um homem ao seu povo. O poder pode tudo, menos deter a autonomia do homem para morrer.

– Entendo.

*

Em 13 de agosto de 1954, ele pensou em fazer o que faria 11 dias depois.

Alzirinha andava toda preocupada. Viera com um bilhete, dizendo que o havia encontrado sobre a mesa de trabalho dele. Como podia ter esquecido aquilo entre os papéis, no gabinete? Aquilo se prestava a interpretações dúbias. Agora a filha alimentava minhocas na cachola. Tinha mais gente metida naquela “descoberta”, certamente o Fittipaldi, que vivia observando tudo de canto de olho, pressentindo coisas, farejando tragédias, tudo por ser leal como alguém realmente da casa, ou até mais do que alguns. A rapariguinha viera com aquele ar de sabichona, mas, ao mesmo tempo, de sincera inquietação, quando estava fazendo a barba.

– Olha só o que eu achei, papai!

– Ora, rapariguinha, onde é que achou isso?

– Quer me fazer sofrer do coração nesta idade?

– Onde achou isso, rapariguinha?

– O senhor faça o favor de ter mais cuidado com as suas coisas, porque quando não sou eu que estou cuidando, o senhor as vai espalhando por aí. E assim como foi o “olho bobo” de um amigo, podia ter sido um inimigo a pegar isso.

– Quem manda seres bisbilhoteira?, perguntara, rindo.

– Quem manda deixares esses papéis ao alcance dos bisbilhoteiros?

– Não é o que estás pensando, minha filha. Não quero o sacrifício de ninguém. Pretendo resistir para que a minha atitude fique como um protesto. Mas não posso aceitar que me humilhem nem tanta iniqüidade. Não te preocupes mais, minha filha, não pretendo me suicidar.

O bilhete, que guarda, já era um manifesto generoso de resistência: “Deixo à sanha dos meus inimigos o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o que desejava”.

*

Fatiga-se. Não dorme. Vem-lhe mais uma lufada do que num dia de novembro de 1930 anotou no diário: “Quantas vezes desejei a morte como solução de vida. E, afinal, depois de humilhar-me e quase suplicar para que os outros nada sofressem, sentindo que tudo era inútil, decidi-me pela revolução, eu, o mais pacífico dos homens, decidido a morrer. E venci, vencemos todos, triunfou a Revolução! Não permitiram que o povo se manifestasse para votar, e inverteram-se as cenas. Em vez de Júlio Prestes sair dos Campos Elísios para ocupar o Catete, entre as cerimônias oficiais e o cortejo dos bajuladores, eu entrei de botas e esporas nos Campos Elísios, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete com poderes ditatoriais. Washington Luís provocou a tormenta, e esta o abateu”.

*

Getúlio tinha algum grau de depressão, um elevado conceito de honra pessoal e uma clara tentação suicida.

Até as vacas de São Borja e Itaqui sabiam disso.

E as páginas do seu diário e dos livros dos historiadores.

Sem contar as janelas do Palácio do Catete, a quem ele se confessava em silêncio.

 

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