Gilles Lipovetsky: a moral morreu?

Gilles Lipovetsky: a moral morreu?

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O filósofo francês Gilles Lipovestsky fala hoje à tarde em Porto Alegre.

Ele tem escrito livros institagantes sobre temas como moda, luxo, pós e hipermodernidade. Um dos seus bons livros é "Metamorfoses da cultura liberal" (Sulina) no qual ele aborda as relações entre marketing, ética e empresa; o papel da mídia em nossas sociedades, sem lhe atribuir um poder absoluto de manipulação; e as transformações dos valores.

A moral morreu? Estamos num mundo sem referências.

Resposta introdutório do filósofo.

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Questionar-se sobre a moral hoje não exige muitas justificativas complexas. Um grande número de homens e de mulheres pensam que não há mais moral e que por toda parte avançam o cinismo, o egoísmo e anarquia de valores. Desde Rousseau, nada é mais comum do que a temática da decadência da moral e da cultura. Mas parece que esse sentimento de dissolução da moral se acentuou com o recuo da influência da Igreja católica, com a ascensão da época do rei dinheiro e do neo-individualismo. Contudo, ao mesmo tempo, a ética ganha, cada vez mais, as primeiras páginas dos jornais: nossa época vê multiplicarem-se os questionamentos éticos, as comissões de bioética, a luta contra a corrupção, a ética dos negócios, a filantropia, as ações humanitárias. A ideologia dos Direitos do Homem, nas sociedades liberais, triunfa praticamente sem contestação. Então, como caracterizar este novo sopro ético? Qual é o significado social dessa reivindicação moral nas sociedades contemporâneas? Eis as questão que pretendo abordar aqui.

Essa revitalização da exigência ética é mais significativa na medida em que nossa cultura cotidiana, da mídia, do consumo, da publicidade, é amplamente dominada pela bem-estar individual, pelo lazer, o interesse pelo corpo, pelos valores individualistas do sucesso pessoal e pelo dinheiro. Desde a entrada das nossas sociedades na era do consumo de massa, predominam os valores individualistas do prazer e da felicidade, da satisfação íntima, não mais a entrega da pessoa a uma causa, virtude austera, renúncia de si mesmo. Claro que se observa o retorno da preocupação com os valores na política na mídia e nas empresas; observa-se também a multiplicação das operações humanitárias, caritativas. Mas, simultaneamente, estamos mergulhados numa cultura individualista de bem-estar, de êxtase do corpo, de sucesso pessoal e de autonomia subjetiva. Vivemos uma situação inédita: a exigência ética está cada vez mais presente mas, ao mesmo tempo, não se reclama mais dos indivíduos devoção, doação de si, sacrifício de qualquer ordem, viver para o outro.

Antigamente o discurso do dever era austero e regular, difícil e disciplinar, como bem o descreveu Durkheim. Os mandamentos prescreviam a submissão do desejo à lei moral, por exemplo, em matéria de vida sexual. Agora, as ações éticas combinam-se, frequentemente, com o divertimento, com o interesse econômico e com a liberdade individual. É uma nova retórica moral que funciona. A moral, em nossas sociedades, não se exprime mais da mesma forma, não se manifesta mais socialmente de maneira idêntica. Não é que tenhamos, no sentido estrito do termo, a invenção de uma nova moral. Numerosos valores atuais já figuravam no Antigo e no Novo Testamento. Mas não funcionam mais da mesma maneira: há uma renovação social da forma dos valores, uma nova regulamentação social da ética.

Para compreender o sentido e o alcance dessa mudança, deve-se, ao menos esquematicamente, recolocá-lo na longa duração da história. Se deixamos de lado as morais antigas, podemos distinguir três fases essenciais, três tipos-ideais, na história da moral ocidental.

A primeira fase, historicamente mais longa, é a era teológica da moral. Até o começo do século das Luzes, a moral era inseparável dos mandamentos divinos (...)

Começa então a segunda fase da história da moral, que chamo de laica moralista, indo até o século XX. A partir do Iluminismo, os modernos buscaram estabelecer as bases de uma moral independente da Igreja. Os princípios morais foram, então, pensados em termos estritamente racionais, universais, eternos — é a “moral natural” —, que estariam presentes em todos os homens (...)

A minha hipótese é que estamos na terceira fase da história da moral, que chamo de fase pós-moralista, a qual rompe, embora o complementando, o processo de secularização acionado no fim do século XVII e no século XVIII. Sociedade pós-moralista, não sociedade pós-moral; sociedade que exalta mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar individual, que o ideal de abnegação. Nossa cultura cotidiana desde os anos 1950 e 1960 não é mais dominada pelos grandes imperativos do dever sacrificial e difícil, mas pela felicidade, pelo sucesso pessoal, pelos direitos do indivíduo, não mais pelos seus deveres (...)

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