Grande escritor

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Josué Guimarães fez história na literatura

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      Não conheci Josué Guimarães pessoalmente. Tive a alegria de conhecer a Nídia, viúva dele, que me convidou algumas vezes para almoçar em Canela. O primeiro livro de Josué que eu li foi “Camilo Mortágua”, por indicação do nosso inesquecível professor de português na Famecos, Mainar Longhi. Achei o romance pesado, mas elegante. É a história da decadência de uma família estancieira em Alegrete. Sempre que penso nesse livro me vem à cabeça a matrona, Dona Eudóxia, no casarão da Independência. Na verdade, penso nesse livro quando vejo algum casarão na Independência. Livros me marcam mais quando acionam algum gatilho pessoal. “Camilo Mortágua” é de 1980, ano em que cheguei à Porto Alegre para estudar. Nessas páginas, comecei a saber que vinha de uma região crepuscular. Acho que me assustei um pouco e fugi.

      Voltei a Josué Guimarães com “Os tambores silenciosos”. Fiquei deslumbrado. Ali tinha mistério, política, realismo fantástico, cotidiano, fofocas, vigilância, controle social, tudo. Tomei um choque. Era literatura com linguagem jornalística. Fluía. Não obscurecia a linguagem para ficar mais literário. Contava, provocava medo e curiosidade. Achei perfeito como metáfora de um regime autoritário. Andei citando pelos bares do Bom Fim. Guardo meu precioso exemplar de 1981, sexta edição, da editora Globo. Gosto de abrir livros e ver o que sublinhei. No caso, aos 19 anos de idade.

Foi este parágrafo: “O dia amanhecera nublado, céu ameaçador, os bandos de aves se entrecruzavam no alto. Maria Celeste abriu os olhos e perguntou à irmã no quarto ainda escuro: que horas são? Maria de Jesus disse que não sabia, mas podia jurar que haviam dormido mais do que habitualmente; teria acontecido alguma coisa com Maria da Glória? Ouviram batidas na divisão de madeira do outro quarto. Maria de Lourdes quis saber: que hora são. Ainda do outro quarto Maria da Graça perguntou: mas afinal o que houve com Maria da Glória que hoje não chamou ninguém?” Não é uma passagem extraordinária nem rebuscada.

O que me fascinava no livro eram os pássaros pretos de papo vermelho, feitos de pano, arame e penas, que foram aparecendo na cidade fechada pelo prefeito na semana da pátria. Então era possível, sem ser estrangeiro, sem ser russo, tcheco ou colombiano, fazer o que se quisesse em literatura? Não era preciso contar algo acontecido ou que poderia ter acontecido? Aquilo era um grito de liberdade local. Eu ainda estava empanturrado de realismo e de romance social. Quando Leonel Brizola veio a Porto Alegre falar na ARI eu estava entre os curiosos. Quando Flávio Tavares fez o mesmo, estive lá. Fiz de tudo para conhecer Cyro Martins, cujos livros lia em Palomas. Por que não tomei providências para ver Josué Guimarães de perto? Que falha.

Enquanto a noite não chega – Por algum tempo, esqueci José Guimarães. Era tanto livro para ler, tanta menina bonita para sonhar em namorar, tanto tese para defender nos botecos, tanta cerveja gelada para tomar e tanta revolução para fazer com palavras! Um amigo, João Ananias, me deu “1964: a conquista do Estado”, vasta pesquisa do uruguaio René Armand Dreifuss. Outro, João Ernesto, na Faculdade de Direito da UFRGS, onde tive passagem relâmpago, havia me emprestado “O arquipélago Gulag”, de Alexandre Soljenítsin”. Por fim, um livreiro maravilhoso me permitira comprar a crédito, na sua livraria, sem emprego e sem dinheiro, os livros que eu quisesse. Eu queria todos.

      Era felicidade demais. Fartura para a alma. A comida do corpo era no RU, sempre paga por algum(a) colega ou professor. No rancho que fiz na livraria, peguei, na última mãozada, “Enquanto a noite não chega”, do Josué Guimarães. Certa madrugada, ao voltar da Osvaldo Aranha, abri o pequeno livro e só o fechei ao terminar. Na época eu lia até às seis da manhã e dormia até o meio-dia. Era saudável. Mesmo Irene, que me abrigou, como amigo, por algum tempo no seu JK, na Santo Antônio, não costumava ver inconveniente nessa disciplina rígida de leitura. A luz acesa não a aborrecia. Foi assim que li a história do coveiro Teodoro, na cidade abandonada, que espera, com as covas abertas, a morte dos últimos habitantes do lugar, dois velhinhos, Dom Eleutério e Dona Conceição, para poder se mudar. A vida era bela.

      Josué Guimarães foi um grande jornalista, mas não me lembro dos seus textos em jornal. Só os livros me interessavam. Os livros, as noites, as teses, as utopias e as colegas. Na história, Conceição e Anete eram as mais belas. Iriana me roubou o coração por uma manhã, com um sorriso luminoso, sem nunca ter sabido disso. Não posso citar todas por falta de espaço. No saguão da faculdade, reli “Enquanto a noite não chega”. Lia passagens em voz alta para colegas. Eles já não me aguentavam mais. Chegaram a me chamar de Seu Teodoro. A vida era assim, um resto de sol, um livro, um beijo, um sorriso, uma discussão nos bares, a certeza de que o futuro seria nosso. Era só esperar. Josué Guimarães teria feito cem anos neste 7 de janeiro de 2021.

 


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