Guri da campanha

Guri da campanha

Imagens da vida como ela era

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Já disse que o nostálgico sabichão não diz nada além de: o que eu fiz é bom; o que é bom eu fiz. Mas há o nostálgico admirativo e sem pretensões. Pode-se pensar nele quando se trata de falar da infância de cinquenta anos atrás. Não existia videogame. Nem celular. Muita gente não tinha televisão. Nas cidades do interior, ser guri era estar em contato permanente com a natureza. Brincava-se de carrinho de madeira, andava-se em cavalo de pau, jogava-se bola no campinho da rua. À noite, histórias eram contadas à beira do fogo. Era melhor? Era outro mundo. Menino da campanha, brinquei muito de estância com gado de sabugo de milho e de osso. O resto era banho de sanga e pandorga.
Em setembro, quando a primavera desponta, eu penso nesses anos de liberdade e de fantasia. Herói era o pai da gente. Quando nos perguntavam o que queríamos ser quando crescêssemos, as respostas eram assim: “Gaúcho”. Ou: “Quero ser como meu pai”. Nem tudo eram flores. Na zona rural não havia energia elétrica nem água encanada. Banheiro era uma casinha pouca higiênica no fundo do pátio. Podia haver muito autoritarismo nas relações. Reinava uma hierarquia pouco porosa. Os tempos políticos eram sombrios. Mesmo assim, algo estavam em gestação.
Talvez por isso eu me embale com estas imagens: morrerei em Palomas de onde nunca pude sair. Morrerei em Palomas mesmo que seja em Paris de minhas fugas e ardis. Morrerei quando cair na tarde tristonha o aguaceiro nos campos do veterano Machado, onde se canta Vallejo e se ouve o achado de um violão insepulto ou o choro do bandonion soando como um indulto. Morrerei em Palomas ao cair de uma noite que nadie quiere cantar e que não poderei olvidar. Morrerei como canto, na varanda de casa, casa verde do pampa. Eu me repito por acordar no meio da noite ouvindo as mesmas falas das minhas fabulações mais antigas.
Palavras que me falam da alegria de ser. A vida é uma tarde de domingo, entre julho e setembro no sul. Vez ou outra, há um céu azul, imenso despenhadeiro ao avesso por onde despencam as almas, os sapatos, deuses e palmas soprados por um duende travesso. Alma é um edifício com mil janelas, todas com as persianas baixadas num dia de nuvens densas e cinzas. De longe, um menino espia a fresta que se abre na maresia: é o seu espírito fazendo xixi. A gente olha os prédios, os carros, as ruas, as árvores e os escarros que se acumulam nas calçadas frias. Por trás de tudo isso, uma lembrança: certa noite, anos antes, na infância, havia uma menina que sorria para a lua e estava feliz.
Ser guri era viver num reino de palavras. Esses ventos solenes do Norte jamais soprarão a minha sorte, talvez dobrem pela minha morte ou esculpam árvores no céu. O que corre em minha alma raras vezes tem a calma das navegações em alto mar. Dragões não dormem ao luar para sonhar que pensas em mim. Meu corpo se contrai na memória do beijo e se endurece na cor do marfim. Leões morrem de solidão e desleixo enquanto meus sonhos se perdem nas lembranças do último vendaval. A paixão é um veleiro no cais, vulcões devoram a fogueira do sol.

 


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