Há um cadáver no Jaburu

Há um cadáver no Jaburu

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A questão é técnica. Jamais ideológica. Ideologia é sempre o pensamento do inimigo, que não tem consciência da sua inconsciência. A ideologia própria se apresenta como ciência e neutralidade. Sem delongas. A notícia não espera. Eis a manchete: foi descoberto um cadáver na porta do Jaburu. O presunto está em adiantado em estado de decomposição. A mídia sentiu o cheiro e correu para o local, que se encontra encoberto por vasos de flores providenciais. A polícia localizou o corpo. A família registrou o desaparecimento da pessoa. Apesar de todos esses indícios, o governo diz que não há provas. Nem corpo. Nem morto. Nem vítima. A questão é técnica. Vamos aos detalhes.

Como se sabe que há um cadáver na porta do Jaburu? Graças a uma câmera escondida. Eis o ponto. A câmera é clandestina. A gravação não foi autorizada. O porta-voz é categórico: se o meio de obtenção da prova é ilícito, a prova não vale. Logo, evidentemente, não há cadáver. A população se agita. A mídia reverbera. A oposição manda flores. O governo insiste: não há cadáver. A prova é ilegal. Todos gritam: “E o cheiro, e o cheiro, e o cheiro?” O ministro da Justiça rebate: “O direito não pode ser submetido ao cheiro. Isso significaria, mutatis mutantis, entrar num estado de exceção”. O cadáver na porta do jaburu jaz como um fantasma à espera da sua materialização. Era para ser a rainha das provas, a prova material, mas, sem delação, ele é apenas uma miragem capturada ilegalmente.

A forma é formante. Vale mais do que o conteúdo. O cadáver poderia gritar que está morto. De nada adiantaria. A forma o deforma. Joesley Batista não esteve no Jaburu. Não gravou sua conversa com Michel Temer. Não ouviu dele incentivos para manter a boa relação com o presidiário Eduardo Cunha. Não foi aplaudido pelo presidente da República por estar “segurando” dois juízes e um procurador. Não escutou a indicação do nome de Rodrigo Rocha Loures, a quem entregaria uma mala com R$ 500 mil, para ser o seu contato com o primeiro mandatário da nação. Nada disso aconteceu.

A gravação não tem valor.

O cadáver da porta do Jaburu escoiceia, esbofeteia, refestela-se, discursa, viaja e reclama atenção. Quer ser sepultado, pranteado, esquecido. Sabe que o seu tempo acabou. Quer sair de cena. Não suporta mais a pressão. De nada adiante. O porta-voz chama a imprensa e diz:

– Não há cadáver algum. Flagrante preparado é ilegal.

Na Alemanha, o presidente da República faz eco:

– Não há crise econômica no Brasil.

A nação está em choque. O que fazer com um cadáver insepulto e, pior do que isso, não reconhecido pelas autoridades? O medo se espalha: e se uma doença se disseminar contaminando políticos que circulam pelo Jaburu? Sobrará alguém para governar o país em caso de queda do presidente da República? Últimas notícias da porta do Jaburu:

– Tem um cadáver ali.

– Onde?

– Bem ali.

– Não estou vendo.

– Olha a imagem aqui no meu celular.

– Celular? É fakenews. Não há crise. Nem cadáver.

Há somente um odor de putrefação.

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