Homens e gestos: minha fala no Palácio Piratini

Homens e gestos: minha fala no Palácio Piratini

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Homens e gestos

Esta é uma história de homens, palavras e gestos.
Uma história de heróis.
Heróis de renome e heróis anônimos.
Dois grande heróis: Leonel Brizola e João Goulart.
Um se tornou herói pelo excesso.
Excesso de coragem e de ousadia.
Entrincheirou-se neste palácio de metralhadora a tiracolo e microfone ao alcance da mão. Requisitou a Rádio Guaíba, mobilizou a população, inflamou-se, queimou de entusiasmo, incendiou corações e mentes.
O outro, Jango, brilhou pela ponderação.
Se Brizola tornou-se herói ao correr o risco de perder a vida pela causa justa, Jango tornou-se herói ao saber evitar uma guerra civil. Queria o poder, que lhe cabia de direito, mas não o queria contando cadáveres de inocentes. Deu um passo atrás para dar dois à frente.
Uma história de sargentos heróicos na Base Aérea de Canoas, entre os quais Caetano Vasto, o sub Vasto, Ney de Moura Calixto, Mesquisedec Medeiros e Edio Erig.
Mas também uma história de um capitão heróico, Alfredo Ribeiro Daudt, que disse não aos que pretendiam executar a ordem de bombardeiro do Palácio Piratini.
Esta também é uma história de vilões: os três ministros militares golpistas: Odilyo Denys, da Guerra, Grun Moss, da Aeronáutica, e Silvio Heck, da Marinha.
E de um vilão civil: Carlos Lacerda, jornalista, dono da Tribuna de Imprensa, udenista, eterno golpista, governador da Guanabara, polemista e mentiroso.
Esta é também a história de um presidente esquisito, Jânio Quadros, eleito para varrer a sujeira do Brasil e que, menos de sete meses depois da posse, varreu a si mesmo, num gesto sem explicação convincente até hoje.
Esta é a história de uma força heróica e leal, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, tendo o major Emilio Neme como braço direito de Leonel Brizola.
Esta é também a história de um militar conservador, que se via como um soldado obediente à hierarquia, capaz de vencer a si mesmo e mudar de posição, adotando a Legalidade depois de ter dito que seguiria seus chefes. Esta é também a história do general Machado Lopes.
Esta é a história de um arcebispo conservador, Dom Vicente Scherer, que soube, na hora certa, estar do lado certo, o lado da Cúria Metropolitana junto do governo.
Esta é a história de radialistas e jornalistas que souberam tomar partido, o partido do certo e do legal: Carlos Bastos, JK, Flavio Tavares, Lauro Hagemann, Naldo Freitas, Celso Costa, Homero Carlos Simon, Índio Vargas, tantos nomes, sem contar os homens da imprensa do governo, Hamilton Chaves, Carlos Contursi e outros.
Esta é a história de um momento em que o Rio Grande do Sul se uniu, colocando-se acima dos partidos. A Assembleia Legislativa ficou em vigília permanente.
Homens e mulheres apresentaram-se como voluntários no Mata-Borrão e fizeram ordem unida nas praças e ruas.
Mas esta é também a história desses homens, dos seus gestos e das suas frases inesquecíveis e grandiosas.
Uma história que começa, em 25 de agosto de 1961, com um bilhete de renúncia e uma carta enigmática. Jânio Quadros tentando explicar-se, referindo-se certamente ao Corvo Carlos Lacerda, o intrigante, o insatisfeito, o golpista: “Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração”.
Esta é a história do marechal Henrique Teixeira Lott lançando um manifesto, antes de ser preso, para denunciar o golpe defendido por seus colegas: “Sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à nação”.
É a história de Leonel Brizola, aquele que um dia se chamara Itagiba, depois Leonel Itagiba, antes de ser, por escolha própria, apenas Leonel, Leonel de Moura Brizola.
Brizola dizendo no seu mais célebre discurso, começado às 11 horas e oito minutos de 28 de agosto de 1961: “Aqui nos encontramos e falamos por esta estação de rádio, que foi requisitada para o serviço de comunicação, a fim de manter a população informada e, com isso, auxiliar a paz e a manutenção da ordem:
Brizola subindo o tom:
“Esta rádio será silenciada, tanto aqui como nos seus transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem balas”.
Brizola ironizando o ministro golpista da Guerra: “Esse homem está sofrendo de arteriosclerose ou outra coisa”.
Brizola despedindo-se trágica e pateticamente: “Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo”. Joguem essas armas contra este povo”.
Esta é a história do governador Brizola, aos 39 anos de idade, declarando: “Não daremos o primeiro tiro. Mas, creiam, o segundo será nosso”.
É a história de uma ordem absurda transmitida pelo general Orlando Geisel a Machado Lopes: “O III Exército deve compelir imediatamente o sr. Leonel Brizola a pôr termo à ação subversiva que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e concentração de tropas e outras medidas que competem exclusivamente às Forças Armadas (...) Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário”.
Esta é a história de uma desobediência militar.
É a história do Sub Vasto dizendo ao seu superior, o major Cassiano, olho no olho, no auge da tensão:
– Sr. Comandante, já dissemos, ninguém vai e nem os aviões vão decolar.
É a história do major respondendo aos gritos:
– Vou indiciar todos vocês ao Estado Maior para um Conselho de Guerra.
Esta é a história do sargento Melquisedec Medeiros gritando num momento de perigo extremo: “Larguem os sargentos e abandonem a pista ou mandamos bala!”.
Esta é a história da rebelião desses heróis, contada, agora, em detalhes por um dos protagonistas, Ney de Moura Calixto, em “Os sargentos da Legalidade”.
História de um carioca que gostaria de “jogar umas azeitonas na cabeça de Brizola”.
É também a história de um cadete, Paulo Ubirajara Linhares, destacado para uma missão de um comando suicida do Centro de Instrução Militar, o que ele lembra com estas palavras: “Esse grupo de combate especial era comandado pelo Capitão Zilmar Silva e pelo subcomandante 1º Tenente Valdo Marques da Silva e composto por oito cadetes sendo que o atirador da arma automática mais pesada do grupo coube a mim (...) Esse Grupo de Combate seria suicida, pois caso tivesse contato com o exército no cimo do morro deviria abrir fogo e fazer desbordamento para o colo da represa e não para o lado do CIM, isto é, iria sempre ao encontro desse provável inimigo”.
Esta é a história de Cordeiro de Farias, nomeado para comandar o III Exército, que telegrafa a Machado Lopes: “Participo prezado amigo fui nomeado comandante do III Exército”, recebendo uma resposta precisa, “agradeço participação prezado amigo. Se aqui chegar será preso”.
Está é a história de Dom Vicente Scherer dizendo estar pronto a sentar na frente do palácio para defendê-lo, por não acreditar no ataque, o que se transformaria rapidamente em o arcebispo sentou-se na frente do palácio para esperar o ataque, notícia publicada até no sisudo jornal da direita francesa Le Figaro.
Esta é a história de muitas anedotas, uma delas contada por um jovem fotógrafo do Palácio, Lemyr Martins: quando Dona Neusa, esposa solícita, colocou um barbeador junto ao rosto do marido, Leonel Brizola, achando ser um microfone, soltou: “Povo do meu Rio Grande...”
Esta é a história de Carlos Lacerda mentindo, como sempre, em seu jornal quase falido: "Fugiu general Machado Lopes; Cordeiro controla Exército no Sul".
Esta é uma história que se termina, em 7 de setembro de 1961, com estas frases de João Goulart no seu discurso de posse, um discurso de conciliação e de esperança:
– Sabem os partidos políticos, sabem os parlamentares, sabem todos que, inclusive por temperamento, inclino-me mais a unir do que a dividir, prefiro pacificar a acirrar ódios, prefiro harmonizar a estimular ressentimentos.
E, altivo, para encerrar:
– O destino, numa advertência significativa, conduziu-me à Presidência da República na data da independência política do Brasil. Vejo na coincidência um simbolismo que há de me inspirar e orientar na mais alta magistratura da nação.
Esta é a história de um povo que encontrou um líder na hora certa e de um líder que soube encontrar o meio certo, na hora certa, de comunicação com o seu povo: o rádio. Uma história em que uma força puxou e reforçou a outra: os movimentos sociais puxaram o governador, que os puxou com seu verbo e com sua determinação, ninguém ficando imóvel, todos agindo ao mesmo tempo, mas, indiscutivelmente, sob a batuta do intrépido Brizola.
Esta é a história de uma rede de 104 rádios, com a Guaíba transmitindo dos porões deste palácio.
Esta é a história do último levante gaúcho.
Último levante da era do rádio.
Esta é a história de sargentos que foram punidos, presos, cassados, expulsos, pelo crime de terem ficado do lado da Constituição e impedido uma tragédia.
É a história do coronel legalista Alfeu Monteiro, assassinado em 4 de abril de 1964, com dois tiros de 45, dentro do gabinete do comandante da 5ª Zona Aérea.
Esta é a história de um hino improvisado que diz: “Avante brasileiros de pé, unidos pela liberdade”.
A história de um orgulho gaúcho sem fronteiras.
História de muitos heróis que lutaram por uma causa simples, justa, clara e verdadeira: o respeito à lei.
Esta é a história das Vozes da Legalidade.
Vozes que, 50 anos passados, ainda ecoam.
Vozes dos nossos heróis.


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