Houellebecq em Porto Alegre

Houellebecq em Porto Alegre

publicidade

  Mais famoso e melhor escritor francês da atualidade, um dos melhores do mundo, Michel Houellebecq fará palestra nesta próxima segunda-feira, sobre intelectuais no século XXI, no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. É a terceira vez que ele vem à capital gaúcha. A primeira foi em 1999 na Feira do Livro. Michel é meu amigo de longa data. Eu traduzi e introduzi os livros dele – Partículas elementares e Extensão do domínio da luta – no Brasil pela editora Sulina. A ironia e a provocação são as suas ferramentas principais. Estive com ele em São Paulo, Buenos Aires e na Patagônia. Sempre o visito em Paris. Aprendi algumas das dezenas de inflexões da expressão “hummm” que ele pode adotar para pontuar suas respostas. Quando a literatura é apenas entretenimento, Michel Houellebecq atua na contramão a golpe de ideias, teses, ensaios e muita cultura.

O Caderno de Sábado traz hoje um dossiê sobre ele. Para quem nunca o leu, vai uma palhinha, um trecho de Extensão do domínio da luta, romance de estreia que sintetiza a sua visão de mundo.

Um dos baratos do autor é escrever bestiários, conversas entre animais.

*

“Minha reflexão sobre os chimpanzés arrastou-se até tarde da noite de sábado para domingo e acabei por esboçar um novo bestiário intitulado Diálogos de um chimpanzé e de uma cegonha; na verdade, um panfleto político de extrema violência. Feito prisioneiro por uma tribo de cegonhas, o chimpanzé mostra-se, de início, preocupado, retraído. Uma manhã, enchendo-se de coragem, pede para encontrar a cegonha mais velha. Assim que se acha diante dela, levanta os braços para o céu e pronuncia o seguinte discurso desesperado:

‘De todos os sistemas econômicos e sociais, o capitalismo é incontestavelmente o mais natural. Isso já basta para indicar que deverá ser o pior. Uma vez estabelecida essa conclusão, só nos resta desenvolver um aparato argumentativo operacional e não desviante, ou seja, cujo funcionamento mecânico permitirá, a partir de fatos introduzidos ao acaso, a geração de múltiplas provas capazes de confirmar a sentença inicial, um pouco como barras de grafite reforçam a estrutura de um reator nuclear. A tarefa é simples, digna de um jovem macaco; contudo, eu me censuraria por qualquer negligência’.

‘Quando da migração do jato de esperma pelo colo do útero, fenômeno imponente, respeitável e realmente capital para a reprodução das espécies, observa-se, às vezes, o comportamento aberrante de alguns espermatozoides. Olham para a frente, olham para trás, nadam, às vezes, até mesmo na contramão, durante breves segundos, e o estremecimento acelerado da cauda parece traduzir-lhes um questionamento ontológico. Se não compensam essa surpreendente indecisão com uma velocidade particular, chegam, em geral, tarde demais e raramente participam, em consequência, da grande festa da combinação genética’.

‘Assim foi em 1793 com Maximilien de Robespierre, arrastado pelo movimento da história como um cristal de calcedônia tomado por uma avalanche em zona desértica ou, melhor, ainda, como uma cegonhazinha de asas muito fracas nascida por um infeliz acaso pouco antes da chegada do inverno e que encontra muitas dificuldades — a coisa é compreensível — para manter a rota correta nas travessias de jet-streams. Ora, os jet-streams são, como se sabe, mais violentos perto da África; mas ainda vou precisar o meu pensamento’.

‘No dia da sua execução, Maximilien de Robespierre estava com a mandíbula quebrada, presa por uma faixa. Pouco antes de ele entregar a cabeça à guilhotina, o carrasco arrancou-lhe a bandagem. Robespierre soltou um urro de dor, jorrou sangue da ferida, seus dentes quebrados caíram no chão. Depois, o carrasco brandiu o pano aberto, como um troféu, para mostrá-lo à multidão em torno do cadafalso. As pessoas riam e soltavam piadas. Em geral, nesse ponto, os cronistas acrescentam: ‘A revolução estava acabada’. É rigorosamente exato. Nesse preciso instante em que o carrasco sacudiu a bandagem pingando sangue sob a aclamação da massa, quero acreditar que na cabeça de Robespierre se passou outra coisa além do sofrimento. Algo mais do que o sentimento de fracasso. Uma esperança? Ou, sem dúvida, o sentimento de que tinha feito o que precisava fazer. Maximilien Robespierre, eu o amo’.

A cegonha mais velha respondeu simplesmente, com uma voz lenta e terrível: ‘Tat twam asi’. Pouco depois, o chimpanzé foi executado pela tribo de cegonhas. Morreu, sofrendo de maneira atroz, transpassado e emasculado pelos bicos pontudos das aves. Tendo questionado a ordem no mundo, o chimpanzé tinha de perecer; realmente, podia-se compreender; era assim. Domingo de manhã, andei um pouco no bairro; comprei um pão com passas de uva. Era um dia suave, mas um pouco triste, como é, com frequência, o domingo em Paris, sobretudo quando não se acredita em Deus.”

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895