Imaginário, simbólico e representação

Imaginário, simbólico e representação

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Intelectuais costumam pensar que as ditas pessoas simples, o tal leitor comum, só entendem coisas rasas. É uma forma de autoelogio elitista. Seria preciso simplificar para ser entendido em jornal. Historiadores acham que são mais exigentes em provas e detalhes do que jornalistas. Eu tenho a minha visão complexa: sabe-se ou não. Eis tudo. Cheguei a uma conclusão radical: tudo é jornalismo. Antropólogos, sociólogos, historiadores e outros cientistas sociais fazem jornalismo com direito a citar longamente livros como fontes. O historiador é um jornalista que cobre o passado. O sociólogo faz jornalismo interpretativo. O antropólogo faz reportagens de imersão.

Tudo é tese. Uma tese que teve seu tempo privilegiava a teoria sobre a narração dos fatos. As teorias passam como modas de estação. A narração dos fatos fica. Uma teoria bastante difundida sustenta que fatos não existem. Só interpretações. Ouvi esta conversa erudita.

– Fatos não existem.

– Fato.

– Tudo depende do ponto de vista.

– É o meu olhar sobre as coisas.

Sociólogos e historiadores chamados de positivistas acreditavam na objetividade total. Antropólogos denunciaram essa ilusão de verdade. Apostaram na etnografia, uma forma de coleta e descrição de dados pretensamente distanciada e neutra (esse termo não é admitido, mas fica subentendido) capaz de mostrar a cultura do outro sem submetê-la ao olhar do narrador externo. O positivismo foi expulso pela porta da frente e voltou sofisticadamente pela janela. O antropólogo não julgaria. Quem se enganou? Se a etnografia está certa, a neutralidade é possível. Então os antropólogos estão errados. Paradoxos. Eu não tenho dúvida de que, embora pouco praticadas, neutralidade, isenção, objetividade e imparcialidade são possíveis. Não sei se são sempre desejáveis. Sei que são praticáveis.

Pensar que nossa bagagem sempre condiciona nosso olhar é um determinismo biográfico. Por que podemos suprimir o que somos para ver em oposição aos nossos condicionamentos? Porque sim. Porque podemos. Porque a natureza nos deu essa faculdade. É como a resposta à famosa pergunta: por que existe algo em vez de nada? Porque sim. A questão que fica é: como decidir quem está certo quando há conflito narrativo ou de ponto de vista? Nem sempre é possível. Em muitos casos, é. Como? Só não sabe a resposta quem pretende sofismar.

Houve o tempo do existencialismo, do estruturalismo e do marxismo. Estamos no pós-tudo: pós-verdade, pós-estruturalismo, pós-teoria. Estou publicando um livro, trabalho lento de cinco anos, intitulado “Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação” (Sulina). Sempre que falo de imaginário em palestras alguém levanta e dado e observa ou pergunta:

– Imaginário é uma representação, é o simbólico?

Não. A representação coloca um símbolo no lugar de outra coisa. A taça como vitória. A espada como conquista. A luz como criação. O imaginário não é uma substituição. Nada representa. O imaginário é um excesso, uma saturação, uma cristalização, uma aura, aquilo que dá sentido, um excedente que hiperdimensiona algo. Uma intensidade. O simbólico faz uma troca. O imaginário realça uma experiência. O imaginário pode, em certas situações, recorrer ao simbólico para explicitar sua condição. Mas não necessariamente. Isso acontece, muitas vezes, quando se dá nome a uma situação vivida que se transfigurou em imaginário. Mesmo sendo colorado, até 31 de dezembro de 2017, gostou de citar a epopeia gremista da “batalha dos aflitos” como exemplo de representação simbólica para explicitar o imaginário.

O imaginário está na intensidade do que foi vivido e marcou. Já o nome coloca uma expressão no lugar de outra. Simboliza. O imaginário funciona com a força da imaginação. Usa muitos recursos para se afirmar. Vai além da ideologia e da representação. Por que estou falando disso? Por que não falaria? O trabalho do cronista é de provocar, fazer vir à tona a vocação das coisas. O simbólico trabalha com o que sai (substituição). O imaginário opera com o que sobressai.

No almoço deste domingo, caro leitor, sugiro que se discuta imaginário. Por que cidadãos invadiram e incendiaram o Congresso Nacional paraguaio? Por que a corte suprema venezuelana tentou um golpe apoiada numa leitura esotérica da Constituição? Por que os brasileiros aceitam que o governo execute um programa neoliberal radical jamais submetido ao crivo das urnas? Somos o produto de um imaginário da passividade ou os produtores de uma representação simbólica da política como ordem repressiva a serviço das elites?

As panelas repicaram para derrubar Dilma. Era um imaginário. O silêncio atual das caçarolas é uma representação, o símbolo de uma hipocrisia, a conveniência colocada no lugar da decência e da indignação? Questão de ponto de vista? Há fatos: nunca tantos ministros de um mesmo governo estiveram envolvidos em denúncias. Se a minha sugestão for aceita o domingão será inesquecível. Bom apetite!

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