João Alberto morava ao lado

João Alberto morava ao lado

Faces do racismo brasileiro

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      O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, afirma que não tem racismo no Brasill. Ele não alcança a profundidade do fenômeno. Acha que racismo é somente não sentar ao lado de negro no ônibus ou se declarar superior.

A cantora Ludmila contou que foi discriminada na primeira classe de um avião em voo para a Itália. Uma senhora branca recusou-se a viajar sentada ao lado da artista. Alcione lembrou que, quando não era famosa, foi barrada, junto com um músico, num clube. Não queriam negros. Já contei muitas vezes que nos bailes da minha infância e adolescência negro não entrava. Nem nos clubes da cidade nem nos galpões da campanha. Se entrava, em raras ocasiões, não podia tirar branca para dançar. Se o fizesse, fechava o tempo. Eu vi isso. Negro podia ser amigo de branco, mas não podia namorar a irmã do parceiro.

      O preconceito continua fazendo estragos. O jogador Richarlison, atacante do Everton, da Inglaterra, e do Brasil, comentou uma carta de um atleta gay da Premier League, o mais badalado campeonato de futebol do mundo, falando dos prejuízos à sua saúde mental por ter medo de se assumir diante de colegas e torcedores. Racismo, machismo e homofobia grassam. Se um homem branco bebe demais e comete um ato condenável, sempre aparece outro homem branco com algum tipo de poder para alegar que o cara estava fora de si e que, portanto, não pode ser responsabilizado plenamente. Se uma mulher bebe demais e sofre um ataque, diz-se o contrário, que se tornou responsável ao “se expor”.

      O advogado Frederick Wassef, o mesmo que deu guarida para Fabrício Queiroz, o faz-tudo de Flávio Bolsonaro, está sendo acusado de racismo pela garçonete de um restaurante, que ele teria chamado de “macaca”. Vidas negras importam. Mas os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que parecem importar menos numa sociedade racista como a nossa: 64% dos desempregados são negros, 75,2% dos menores ganhos são recebidos por negros, em cada três presos, dois são negros, o analfabetismo é quase três vezes maior entre pretos e pardos, que são 78% dos mortos pela polícia. Homens brancos ganham 74% a mais do que negros e 27% a mais do que mulheres brancas, mulheres negras recebem menos do que homens negros. A pirâmide fica assim: homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres negras. Racismo e machismo dão-se as mãos para atacar.

Contra o comunismo

Os ideólogos racistas sempre encontram uma razão para manter a exploração dos negros. José de Alencar, escritor e político, escravista apaixonado, argumentava assim na tentativa de convencer o imperador a resistir aos libertadores: “Os filantropos abolicionistas, elevados pela utopia, não sabem explicar este acontecimento. Vendo a escravidão por um prisma odioso, recusando-lhe uma ação benéfica no desenvolvimento humano, obstinam-se em atribuir exclusivamente às más paixões humanas, à cobiça e à indolência o efeito de uma causa superior”. Ainda há quem caucione os seus argumentos. Alencar era puro entusiasmo: “Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda hoje um vasto deserto. A maior revolução do universo, depois do dilúvio, fora apenas uma descoberta geográfica, sem imediata importância. Decerto, não existiriam as duas grandes potências do novo mundo, os Estados Unidos e o Brasil. A brilhante civilização americana, sucessora da velha civilização europeia, estaria por nascer”. Moral da sua história: a escravidão foi um bem.

Esse José de Alencar é ensinado nas escolas? Fala-se do seu escravismo fanático? Eis a sua apaixonada defesa da escravidão: “Cumpre não esquecer, quando se trata desta questão importante, que a raça branca, embora reduzisse o africano à condição de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado. A futura civilização da África está aí nesse fato em embrião”. Que pérola: nobilitar escravizando! O homem não se continha: “Nas memórias da escravidão moderna está registrado o sumário crime dos governos que guilhotinaram essa instituição, para obedecer à fatuidade de uma utopia. De uma utopia, sim; pois outro nome não tem essa pretensão de submeter à humanidade o direito a uma craveira matemática”. Abolir era crime! Crime de lesa-propriedade privada.

O romântico autor emocionava-se: “Não nos recordamos que os povos nossos progenitores foram também escravos e adquiriram, nesta escola do trabalho e do sofrimento, a têmpera necessária para conquistar seu direito e usar dele?” O trabalho escravo, como o trabalho infantil ou o trabalho mal pago nos discursos que ainda hoje aparecem, era uma “escola” do comportamento. Fora disso, alertava o desinteressado intelectual, “a liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, cairiam desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo”. Alencar arrematava: “Toda a lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e apresenta uma nova situação, embora imperfeita da humanidade. Neste caso está a escravidão”. Trato de tudo isso em “Raízes do conservadorismo brasileiro”. José de Alencar foi um canalha. Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, André Rebouças, Antônio Bento e Castro Alves provam que era possível não ser como ele. Foi assim. Tudo isso se chama racismo. E mata. Como na última quinta-feira.

João Alberto foi morto em Porto Alegre, no Carrefour, na véspera do dia da Consciência Negra. É mais um na longa lista dos sacrificados. Morreu vítima do racismo estrutural, que bate mais quando o alvo é negro e por isso suspeito.

Suspeito de quê? De tudo. Réu por antecipação.

Condenado sumariamente.

Executado por excesso de zelo na aplicação da pena prévia.

João Alberto morava ao lado. Era vizinho de todos.

Milhões de João Alberto são nossos vizinhos.

Devem se calar nos supermercados para não morrer?

 


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